sábado, setembro 07, 2019

(DIM) «Dor e Glória» de Pedro Almodóvar


Pode alguém ser quem não é? Pode dissociar-se de tudo quanto viveu na infância, na adolescência e na idade adulta, ficcionando sobre aquilo que só conhece a partir de uma perspetiva exterior? As respostas parecem óbvias ao sairmos da sala escura, depois de passado o genérico final de «Dor e Glória». Porque, ao contrário, do que Almodôvar prescrevia quando era jovem, e Inês Lourenço recordou na sua crítica ao filme no «Diário de Notícias», a autoficção torna-se incontornável, quando se avança na idade e conclui-se que, para além do balanço do que se foi, importa realçar o quanto dele se pode extrair para continuar a viver. Daí que o filme constitua um percurso de redenção em que os fatores psicossomáticos parecem tão consistentes quanto os fisiológicos para explicar a incapacidade do protagonista em prosseguir o esforço criativo.
«Dor e Glória» suscita-me juízo ambivalente: nem estamos perante uma obra-prima como glosaram muitos dos que o começaram por o ver em Cannes e nele apostaram para a Palma de Ouro - que não lhe foi atribuída!  -, nem um passo em falso como «Amantes Passageiros» terá representado no conjunto da filmografia do autor.
Quando penso em tudo quanto ele realizou opto muito naturalmente por «Tudo sobre a minha mãe» e «Fala com ela» como sendo os que me deram plena satisfação. Mas no intimismo, feito de abordagem de alguns aspetos reconhecidamente autobiográficos, Almodôvar consegue sempre superar-se e dar-nos belíssimos filmes com momentos capazes de coincidirem na comoção e na distanciada ironia. Sem que essa aparente contradição cause estranheza..
É por isso que adivinhamos haver grande semelhança entre o realizador e Salvador Malló, o confrade aqui interpretado por um Banderas - felizmente resgatado das trampolinices hollywoodescas! -, com quem partilha a infância em recôndito espaço rural e uma mãe tão parca em afetos quanto dúbia na apreciação feita às opções de vida do rebento.
Surgem, igualmente, os padres - aqui poupados às explicitas tentações pedófilas - e os amantes, que já muito distam dos loucos tempos da movida madrilena, quando todos os excessos eram tolerados. Por isso recordamos muitos dos filmes do realizador, como se «Dor e Glória» constituísse a síntese de um ciclo organizado pela Cinemateca para o homenagear. Uma hipótese que o próprio filme valida sugerindo ao mesmo tempo a explicação para o longo distanciamento que Almodovar e Banderas protagonizaram durante muitos anos.
Sobra o lado da toxicodependência, que tivera abordagem colateral nalguns filmes e aqui ganha maior visibilidade. Para concluir que a efémera satisfação dada pela heroína acaba por nunca ser o paliativo para as dores e as frustrações. Nesse sentido a perspetiva otimista com que termina dá-nos a sensação de que a obra de Almodovar ainda estará longe de se ficar por aqui.

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