terça-feira, setembro 26, 2017

(EdH) Cem anos depois das lamas da Flandres

Há precisamente cem anos o meu avô andava atolado na lama das trincheiras da Flandres.  Embora ele me tenha morrido, quando eu tinha catorze anos, e tivesse perdido muitos dos relatos, que ele começava então a fazer-me nas tardes passadas no terraço em frente à sua casa, onde as espigas de milho iam aloirando, ainda lhe ouvi estórias bastantes para ganhar por tal Guerra uma particular atenção. Daí o interesse suscitado por «Portugal e a Grande Guerra», que Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso coassinam e onde estão informações preciosas para o melhor entendimento do que então se passara e compensando de algum modo o que do meu antepassado não cheguei a saber.
Em fevereiro de 1917, quando ele desembarcou em Brest, imperava o impasse nas linhas da frente. A tal guerra, que se resolveria em três meses, já durava há suficiente tempo para milhões de vítimas se irem acumulando nas mórbidas estatísticas. Os aliados preparavam-se, porém, para o ultrapassar com a entrada em cena dos carros de combate, que os alemães tinham desprezado como ferramenta fundamental da sua estratégia. Estes preferiam uma alternativa mais aparatosa: sem descurarem os principais teatros do conflito, concentravam frequentemente esforços nalguns dos que pressentiam mais frágeis para os inimigos, conseguindo desequilibrar os recursos disponíveis em pequenas vitórias, inconsequentes para o resultado final.
La Lys, em 9 de abril de 1918 , foi precisamente uma dessas batalhas, que resultou numa tragédia nacional: ali morreram quatrocentos soldados do Corpo Expedicionário Português e sete mil viram-se aprisionados até ao final da guerra. Naquele batalhão mal equipado, com escassas capacidades militares e pessimamente alimentado - porque as latas de concentrado de carne fornecidas pela logística britânica era odiada por quem ansiava por outros manjares! - os alemães viram a  oportunidade de desferirem um golpe significativo nas forças contrárias. Até porque sabiam urgente a iniciativa tendo em conta que, as chefias militares, compreendendo esse elo mais fraco tinham-no decidido transferir na véspera da batalha, já não indo a tempo de evitar o pior.
O meu avô, colocado a poucos quilómetros do terreno pantanoso onde tudo se consumou, soube da tragédia, sentindo-se impotente para a evitar. Se ele e outros portugueses pretenderam acorrer aos infelizes companheiros foram disso impedidos pelos comandos ingleses que, lucidamente, terão percebido apenas evitarem assim ainda mais mártires e prisioneiros aos que já não conseguiriam escapar a tal destino.
Apesar de terem participado no desfile da vitória em Paris, os sobreviventes da lamentável aventura, nunca perdoariam aos ingleses e a Afonso Costa o imbróglio em que os tinham metido. Sobretudo aos primeiros que, após tão clamorosa demonstração da insuficiência nacional nos combates, ocuparam-nos no detestável suplicio de abrirem novas trincheiras.
E, no entanto, à conta de tal empenho, Portugal manteve-se como potência colonial por mais meio século e partilhou do saque aos vencidos, mormente com essa frota alemã apresada em portos portugueses e que não chegou a cumprir a promessa de termos uma frota mercante digna desse nome.

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