quinta-feira, setembro 21, 2017

(DIM) Quando Woody Allen trocou os cenários novaiorquinos pela cinzenta capital inglesa

Em 2005, quando conseguiu que a BBC Films lhe produzisse o filme para que já não conseguia financiamento nos EUA, Woody Allen estava numa fase muito complicada da sua biografia: embora as desavenças com Mia Farrow tivessem ocorrido há uma dúzia de anos, as mossas na sua imagem tinham-se cristalizado negativamente, tanto mais que os sucessivos títulos  de tal período mostravam-no sem gravitas, quase rotineiro. Longe ia o tempo em que se pensava em Nova Iorque e se o referia como seu ícone incontornável. Já tinham passado dezasseis anos desde que assinara um filme verdadeiramente memorável, «Crimes e Escapadelas», que, muito curiosamente vai replicar neste mui saudado regresso à melhor expressão do talento. Escusando-se, igualmente, a dar o corpo ao manifesto na tela, resguardando-se exclusivamente atrás dela.
«Match Point» revela-se um thriller moral, focalizado num protagonista tão niilista como o era Martin Landau nesse título anterior. E não é, obviamente, por acaso, que começamos por ver esse Chris a ler «Crime e Castigo» de Dostoievski, verdadeira piscadela de olho para toda a trama que se seguirá. Mas, com Woody Allen, é preciso desconfiar desse tipo de sinais, porque alguns revelam-se falsos: quando Scarlett Johansson irrompe no ecrã vemo-la a homenagear Lauren Bacall com a jactância com que acende um cigarro. Logo lhe prevemos um desempenho de femme fatale, que não se confirma: pelo contrário, ela será a grande vítima de um assassino sem escrúpulos, interessado em consolidar a ascensão social obtida por um comportamento arrivista mais bem sucedido do que o «Barry Lyndon» de Kubrick, secundarizando as pulsões afetivas.
Uma das cenas mais memoráveis do filme - a da bola em equilíbrio precário na rede do court de ténis - explicita a tese de estarmos todos dependentes de circunstâncias casuísticas, definindo-se o futuro em função do lado para onde essa bola pende. No entanto a sequência melhor construída é a do assassinato, que dura uns dez minutos, mantém um suspense, até impossível de superar pelo mestre Hitchcock, quiçá só excedido pelas melhores páginas de Patricia Highsmith.
Essa cena, tendo por fundo sonoro o 2º ato da ópera «Otello» de Verdi, melhor evidencia outra das opções excecionais de Woody Allen neste filme: em vez do jazz dos anos 20, 30 ou 40, escolhe árias de sucessivas óperas italianas, sobretudo nas versões em 78 rpm, gravadas na época da Primeira Guerra Mundial e interpretadas em muitas delas pelo inolvidável Enrico Caruso.
«Match Point» foi o filme, que levou a crítica internacional a resgatar o realizador da subalternização a que o remetera por tantas deceções anteriores. Mesmo que, posteriormente, não voltasse a situar-se a um patamar de qualidade semelhante ao que aqui atinge. Mas, merecidamente, ao garantir receitas de 63 milhões para um filme, que só custara 15, ele provava ainda ser investimento seguro para quem se escusara a financiar-lhe este projeto.


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