segunda-feira, setembro 11, 2017

(DL) Vontade não lhe faltou para lhes ir cuspir nas campas!

Andei quatro horas a acompanhar as emissões da France Culture dedicadas a Boris Vian e reconheço terem sido mais oportunidades de revisão da matéria dada do que de aquisição de novos conhecimentos sobre a sua obra.
Li-o há muitos anos, mas não enjeito a forte probabilidade de regressar a alguns dos seus títulos, quando eles me voltarem a surgir à mão na rearrumação dos livros da biblioteca cá de casa. Hoje reconheço tê-los, há muito tempo (tempo demais?) nas filas traseiras das estantes.
A experiência mais recente foi calamitosa: quando vi a adaptação cinematográfica assinada por Michel Gondry na Festa do Cinema Francês de há um par de anos, nada encontrei do que tanto apreciara na leitura. O que não admira: embora muito metafórico, o livro é demasiado relevante no tipo de linguagem utilizada para tornar-lhe exequível a tradução em fotogramas.
O que mais impressiona na curta vida do escritor foi a pressa com que quis preencher as várias existências, que para si inventou.  Se os nenúfares foram tão importantes nesse livro, tão infelizmente adaptado ao cinema, são como planta o melhor reflexo do que criou: a escrita é sedutora e calorosa à primeira abordagem, mas revela-se bem mais sombria se analisada com maior profundidade. A invenção é permanente ou não intentasse Vian fazer do pensamento uma permanente tentativa de percorrer caminhos totalmente avessos aos trilhados à sua volta. Então os lugares comuns ou as certezas inquestionadas eram-lhe demasiado tentadoras como alvo das suas provocações anarquistas.
O carácter condizia com essa bipolaridade: conseguia ser triste e brincalhão como uma criança perdida, diria um dos entrevistados nessa maratona radiofónica. E escrevia tão depressa quanto vivia: sabendo-se condenado a morrer jovem (e assim ocorreria, quando ainda só tinha 39 anos!), dormia entre duas a quatro horas por noite e preenchia todo o tempo livre a escrever, a conviver com os amigos ou a atuar como jazzman nos clubes parisienses atraídos pelo swing.
O relacionamento com os escritores da sua geração replicou essa ambivalência: houve os que foram seus amigos inquestionáveis (Prévert, que era seu vizinho), mas também exasperou os que se viam por ele troçados por se tomarem demasiado a sério. Por isso mesmo, se «L’Écume des Jours» tivera uma receção amistosa e tornara-o passível de se converter no que mais ambicionava, um autor da prestigiada Gallimard, os títulos seguintes foram criticados com violência feroz. Sobretudo, quando se tornou evidente a verdadeira identidade de Vernon Sullivan, o suposto autor norte-americano de policiais de que ele se limitaria a ser o tradutor. O enorme sucesso de vendas de «J’irai cracher sur vos tombes» seria considerado um escândalo para essa corte de literatos demasiado pomposos para acharem a mínima graça às patifarias de Vian.
Hoje, a leitura desses policiais desafiam o leitor para neles encontrar uma América mais verdadeira do que a real, por ser a criação de quem muito amou esse outro lado do Atlântico sem jamais ali ter conseguido ir. 

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