terça-feira, setembro 12, 2017

(DIM) Como um filme pode salvar a vida de quem o realizou

Gosto tanto de boxe como provavelmente Martin Scorcese, que nunca deverá ter-se imaginado a realizar um filme como «O Touro Enraivecido». Assim como não me passaria pela cabeça considerar «São Jorge» um dos melhores filmes portugueses dos anos mais recentes e, no entanto, como tal o defino.
Existem, no entanto, razões de sobra para compreender a sintonia entre o cinema e esse desporto: em ambos importa a gestão do movimento e do ritmo, o confronto dos corpos, o espetáculo da violência, a projeção coletiva dos espectadores num destino individual. O boxe serviu perfeitamente aos norte-americanos para alimentarem mitologias de superiorização sobre um mundo a dominar. Por isso a cinematografia de além-Atlântico está tão repleta de títulos famosos - de que se podem evocar os mais recentes «Ali» de Michael Mann ou «Million Dollar Baby» de Clint Eastwood -, como pretextos para representarem as contradições do amplo espaço geográfico que medeia entre as fronteiras canadiana e mexicana: a agressividade, a coragem, a corrupção, o orgulho, a injustiça, a liberdade, a alienação, a força de carácter, a barbárie, o estado de graça, a mortificação, até mesmo a improvável transcendência.
Em 1970 surgiu nas livrarias uma biografia de Jake La Motta, notável boxeur dos anos 40 e 50, que chegou a ser campeão do mundo de pesos-médios, mas sempre se revelou um ser insatisfeito, egoísta e colérico com tendência para a autodestruição. O temperamento impetuoso e paranoico tinham-no levado a repetir erros atrás de erros. E, no entanto, a versão de Peter Savage até era bastante condescendente para com esse lado sombrio, que atenuava numa sucessão de desculpas esfarrapadas.
De Niro suspeitou do potencial dessa história para criar um filme à medida do seu histrionismo. E instou Scorcese para o dirigir, quando ele acabara de montar «Alice já não mora aqui». Estava-se em 1974 e o entusiasmo do convidado não era grande, limitando-se a pedir a um amigo escritor que, com ele já colaborara em vários filmes, para que iniciasse a adaptação do relato biográfico. Dois anos depois, Mardick Martin apresenta a sua versão, que insatisfaz De Niro e Scorcese. Essa proposta de argumento fora trabalho preguiçoso a seguir quase passo por passo o livro de Savage.
Chamado à pressa para remendar esse texto, Paul Schrader vira-o do avesso, confere-lhe o lado místico sempre presente nos seus trabalhos, e consegue dar alma a uma estória, que não a chegara a ganhar.
Nesse ano de 1978 Scorcese passou por uma grave crise pessoal, que quase o matou: o internamento em estado crítico tanto se devera a uma grave depressão nervosa como ao excessivo uso de drogas e barbitúricos. Eivado de graves dúvidas existenciais e com o casamento fracassado, Scorcese despertaria do leito do hospital decidido a fazer do percurso de La Motta uma réplica do seu. «Raging Bull» significará o início da redenção em que a personalidade do boxeur e a sua se irmanam como se saídos do mesmo ventre materno. Apesar da antipatia pelos combates no ringue, ele vai assinar os melhores planos cinematográficos alguma vez concebidos sobre tal espetáculo, realçando-lhes a selvajaria, o instinto primitivo de sobrevivência. Em certos planos atinge-se uma dimensão singularmente metafísica.
Apesar de ter constituído um fracasso comercial - que conjuntamente com «As Portas do Paraíso» de Michael Cimino precipitaria a falência da United Artists -, «Raging Bull» serviria a Scorcese para se salvar. Doravante ele reconheceria ter sido tal trabalho cinematográfico a devolver-lhe o perdido sentido da Vida. Mesmo que demorassem alguns anos para que corrigisse junto dos estúdios a fama de criador de flops, nos quais importaria não investir um cêntimo... 

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