domingo, setembro 24, 2017

(DL) Como Michelangelo poderá ter encontrado o objetivo da sua arte

Em 1505 Michelangelo já é escultor consagrado graças à sua Pietá. No romance «Pietra viva», a escritora Léonor de Récondo (igualmente violinista e líder do Ensemble de música barroca «L’Iriade») imagina-o a ter um tremendo choque emocional em vésperas de iniciar a preparação da mais recente encomenda do Papa Júlio II, homem precavido porque interessado em garantir, tão cedo quanto possível, o seu túmulo. À mesa onde costuma dissecar os cadáveres, para lhes apreender o mistério de terem estado vivos, encontra o corpo do belo e bem amado Andrea sem sinais visíveis da causa do seu trespasse.
Não é que a paixão dele pelo jovem monge tivesse comportado alguma cumplicidade carnal - nesse sentido o artista mantém-se firme na equívoca virgindade! - mas o morto alimentara os seus mais excitantes fantasmas eróticos e artísticos.
Incapaz de, finalmente, tomar-lhe posse do corpo, Michelangelo parte nessa mesma noite para Carrara onde se atardará seis meses a escolher os mármores mais puros na pedreira ali dirigida pelo seu amigo Topolino. Uma dúvida o atormenta: que teria causado a morte de Andrea? Razão para pedir esclarecimentos por carta a outro clérigo, o frei Guido.
Por essa altura o leitor julga iminente um mistério policial em ambiente de «O Nome da Rosa», mas a autora dispensa-se de tal tipo de intriga, mesmo demorando a dar conta de uma prosaica febre como causa da morte do jovem monge. Aquela que poderia ser a ferramenta de esclarecimento do possível crime - uma «Bíblia» sublinhada, que o defunto lhe deixara em testamento - acaba por servir-lhe de complemento à descoberta, que o aguarda graças ao convívio, ora assertivo, ora entediado com Michelle, um miúdo de seis anos, cuja mãe morrera de parto num dos primeiros dias de estadia do artista na aldeia. É dos encontros e desencontros com esse rapaz, que o escultor verá mudada toda a perspetiva sobre a sua arte, recuperando na memória os rostos, quer de Andrea, quer da própria mãe, perdida em circunstâncias similares às do miúdo. A escultura torna-se-lhe a oportunidade para garantir a imortalização de quem ama com o recurso à pedra viva. É que, se a carne conhece a finitude, a pedra mantém-se quase imutável ao longo de muitos séculos.
Leonor de Récondo revela-se tão subtil no manuseio das palavras e na construção das frases, quanto nas cordas do seu violino. Se a estória é linear, sem azo a grandes elucubrações reflexivas, não deixa de estar bem contada, credibilizando um possível sentido para a arte de um dos grandes artistas do Renascimento.

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