segunda-feira, setembro 01, 2014

PRETÉRITOS: nostalgias hitlerianas

«O Marinheiro que perdeu as graças do mar» é uma das minhas novelas preferidas de Mishima, não só pela história em si - como se altera o quotidiano de um adolescente, quando passa a ter por padrasto um antigo marinheiro mercante subitamente sedentarizado em terra - mas porque esse título se me ajustou perfeitamente quando, a contragosto, me tive de despedir de uma vida de duas dúzias de anos enquanto oficial da marinha mercante.
Essa longa experiência enriqueceu-me com vivências extraordinárias, que tenho sido instado a conta-las, mormente por quem também comigo as partilhou. Razão para o ir fazendo com alguma frequência tão só me vão chegando ao sabor dos acasos da memória.
Pode parecer paradoxal que, de uma experiência de vida tão grata e enriquecedora, opte por lembrar em primeiro lugar um dos episódios mais desagradáveis por que passei. E recordei-o porque ainda há um par de horas conversava com um antigo emigrante na Austrália, que elogiava a disciplina e o rigor com que os alemães ali igualmente radicados encaravam o trabalho.
Ora, muito embora pudesse escolher exemplos confirmativos dessa opinião, logo me lembrei do ano de 1989, quando integrava a tripulação do paquete «Funchal» então afretado para uma viagem curta, de três ou quatro dias, com passageiros exclusivamente alemães, que entrariam em Hamburgo, no final de um cruzeiro às capitais do Norte da Europa.
Estava a experimentar as máquinas principais - tarefa obrigatória uma hora antes da partida! - quando veio lá de cima o Jacques Malabarista, um dos eletricistas mais antigos do navio. Ele e outro tripulante da secção de Máquinas - o serralheiro Manuel Lourenço - eram os únicos que praticamente só tinham conhecido o «Funchal» já que ali sempre tinham trabalhado desde que fora inaugurado em 1961para servir de uma espécie de iate privativo do «venerável almirante».
- Eh, primeiro! Nem queira saber que gente está lá em cima a entrar por portaló! São assustadores!
Na altura não dei muito crédito ao que ele revelava, já que o considerava muito propenso a exageros. Mas quando, ao jantar, me sentei na messe em frente ao médico e ao Chefe Inácio, soube a novidade: a organização que nos contratara era uma associação neonazi, que se dispunha a fazer uma viagem do tipo romagem a sítios onde navios alemães tinham sido afundados pelos aliados.
Com a curiosidade de quem nunca encarara face a face com tal tipo de gente arrisquei vestir o dólman e dar uma volta pelos espaços reservados aos passageiros. Já passava das nove e meia da noite e o Salão Ilha Verde, onde costumavam acontecer os espetáculos, estava vazio e às escuras. O Bar Porto tinha um pequeno punhado de clientes e o que se situava junto à chaminé - o «Tasco» - nem esses contava. A maioria dos passageiros estava já recolhida nos camarotes, à exceção dos que se tinham decidido pelo cinema. Aí sim, uns vinte espectadores viam o «Olympia» da Leni Riefenstahl.
Eu já o vira e apreciara-o como meritória obra de arte mas, naquele contexto, as silhuetas perfeitas dos atletas arianos soaram-me a algo de sinistro, que me levaram a desandar rapidamente dali.
Fiquei vacinado para o contacto com esses nostálgicos dos tempos hitlerianos. Nunca houvera, nem viria a haver nenhuma outra viagem onde me cingisse ao trajeto entre o camarote, a casa das máquinas e a messe dos oficiais. Com uma exceção: numa paragem ao largo da ilha de Bornholm vim ao convés espreitar o discurso e o arremesso de flores para as águas calmas onde, a alguma profundidade, jazia a carcaça de um dos submarinos da classe U.
Mas foi espreitadela de curta duração: tudo aquilo era tão soturno, que ficava a vontade de ver tais passageiros abandonarem um espaço quase sempre rendido ao clima festivo de quem ali vinha viajar por prazer e, por uma vez, conspurcado por tão grotescas figuras.


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