Nos últimos anos tenho lido vários romances de Haruki Murakami, não tanto pelo tipo de conteúdo fantástico nem pelo estilo vulgar, mas sobretudo por corresponder a um tipo de fenómeno literário a que convém estar atento. É que trata-se de uma moda, que acaba por condicionar algumas das linhas de força para que tende a evoluir a forma de encarar a Literatura. Já não tanto como obra de arte, mas como mercadoria, que se vende nos hipermercados ao lado das cebolas e dos detergentes.
Quando surgiu «1Q84» anunciava-se a obra mais ambiciosa do autor, até porque prometia-se a apresentação na forma de uma trilogia.
Hoje, quase a acabar a leitura do 2ºvolume, posso considerar que a montanha pariu um rato. Como sempre em Murakami lê-se facilmente, mesmo quando certos capítulos parecem ali inseridos para «encher chouriços», mas não existe nenhum argumento passível de justificar o entusiasmo por algo de inovador.
Tudo começa com uma jovem de cerca de trinta anos, Aomame, a inquietar-se pela possibilidade de chegar atrasada a um encontro no bairro de Shibuya já que a autoestrada para Tóquio parece assaz congestionada. Nem sequer a Sinfonietta de Janacek, transmitida pelo autorrádio do táxi, a parece consolar. Por isso o motorista dá-lhe uma sugestão, que ela acata: sair do carro e, através de umas escadas de emergência, aceder à rua situada num nível inferior ao da estrada e onde poderá encontrar uma paragem de comboio. Mas ele avisa-a:
“Só mais uma coisa (…) Não se esqueça do que lhe digo: as coisas não são o que parecem” e acrescenta: “E quando uma pessoa dá um passo e faz uma coisa desse género [algo fora do comum] é provável que o cenário quotidiano … como hei-de dizer? … pareça mudado. As coisas à nossa volta podem revelar-se um pouco diferentes do que é costume. Eu próprio já passei por essa experiência! Contudo, não se deixe iludir pelas aparências. A realidade é apenas uma. (pág. 21)
Trata-se de conselho asizado, já que, sem disso se dar conta, Aomame irá mudar da realidade de 1984 para outra, paralela, fixada em 1Q84.
A caracterização física do rosto de Aomame surge pouco depois enquanto caminha rapidamente na direção da saída de emergência: “Cerrados com força, os seus lábios não sabiam o que era um sorriso, a não ser que fosse absolutamente necessário. Os olhos mostravam-se frios e vigilantes, fazendo lembrar um marinheiro de vigia na coberta de um navio. (…) Graças a essas características, o seu rosto não causava boa impressão.” (pág. 24)
“Quando acontecia alguma coisa suscetível de a obrigar a franzir a testa ou fazer uma careta, as suas feições mudavam de forma dramática. Os músculos da face crispavam-se, repuxando-lhe o rosto em todas as direções ao mesmo tempo e colocando em evidência a falta de simetria dos seus traços. Formavam-se-lhe profundas rugas, os olhos ficavam de repente mais próximos e encovados, o nariz e a boca mostravam-se violentamente deformados, o queixo retorcia-se todo, os lábios arrepanhados deixavam à mostra enormes dentes brancos.
De um momento para o outro, como se alguém tivesse cortado a corda que prendia a máscara atrás da qual ela se escondia, transformava-se numa pessoa diferente. O espetáculo chocante da sua metamorfose deixava qualquer um aterrado, por isso, Aomame tinha cuidado para nunca franzir o cenho na presença de desconhecidos.” (pág. 25)
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