Aomame e Tengo são os protagonistas da trilogia «1Q84», sobre a qual iniciámos aqui a abordagem ao sabor da respetiva leitura.
Víramos anteriormente que ela era uma professora de ginástica no dia-a-dia, mas com um part time singular nos tempos livres: assassina profissional por conta de uma velha senhora apostada em erradicar do universo dos seres vivos todos os crápulas com historial de violência doméstica ou violação.
Na missão, que lhe cabe cumprir no início do primeiro dos volumes desta história, o visado é um especialista em investimentos petrolíferos a trabalhar no recato de um quarto de hotel.
Extremamente competente, Aomame mata as suas vítimas sem elas se aperceberem do que lhes está a suceder: “O corpo de Miyama ficou hirto, pouco a pouco, foi perdendo energia. Como acontece quando o ar começa a sair de uma bola de basquetebol. Mantendo a pressão do indicador no ponto preciso da nuca, Aomame colocou o homem de borco sobre a secretaria. A sua cara ficou de lado, com os documentos a servirem de almofada. Os olhos estavam abertos, ainda com uma expressão de surpresa. Dir-se-ia que testemunhara algo totalmente inexplicável no derradeiro momento de vida. Não se podia dizer que fosse dor. Ou medo. No seu rosto, lia-se puro espanto.” (pág. 68)
De outra natureza é a missão de Tengo: convencido por Komatsu, um dos responsáveis pela editora para que trabalha, deverá obter de uma adolescente a autorização para reescrever, com maiores cuidados literários, a história por ela enviada para um concurso literário. É assim que, num restaurante de Shinjuku, conhecerá Fuka-eri, que muito o impressionará: “O mero facto de a ver à sua frente provocava-lhe uma espécie de tremor violento ao ponto de o atingir em cheio no coração. Era o mesmo sentimento que lhe provocara a fotografia da jovem, quando a vira pela primeira vez, com a diferença de que, na presença dela, o estremecimento se intensificou. Não se tratava de amor nem de desejo sexual. Qualquer coisa conseguira infiltrar-se no seu interior através de uma pequena brecha e procurava colmatar o vazio que existia dentro dele. Era a sensação que tinha . O vazio não fora criado por Fuka-eri. Existiam sempre no seu intimo. Ela limitara-se a fazer incidir sobre ele uma luz especial.“ (pág. 85)
Fuka-eri dá-lhe a autorização para reescrever «A Crisálida de Ar» mas impõe-lhe um reencontro com outra pessoa para o domingo seguinte. A Komatsu, Tengo confidencia: “Para ser franco (…) tudo isto me deixa nervoso. Se bem que não existam razões concretas para sustentar as minhas afirmações, tenho a sensação de me estar a meter em qualquer coisa fora do normal. Quando estava na presença de Fuka-eri não senti nada parecido, mas, desde que nos separámos, essa sensação avolumou-se. Chame-lhe uma premonição ou apenas um pressentimento estranho se quiser, porém, há aqui algo de esquisito. Fora do normal, como referi. Sinto-o com todo o corpo, mais do que apenas com a cabeça.” (pág. 92)
Os temas característicos de Murakami vão-se reiterando: o peso das premonições, a singularidade psicológica de alguns personagens, os estranhos sinais dados pela realidade para confundir a realidade e o sonho ou com alguma outra dimensão do tempo ou do espaço onde todas as normas instituídas perdem o seu sentido.
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