Haruki Murakami defende que se só nos dispusermos a ler os livros apreciados pela maioria de leitores, só poderemos reproduzir aquilo que se anda coletivamente a pensar.
Talvez seja esse o motivo para continuar a ler-lhe os livros porque, muito embora ele esteja convertido em autor de best sellers não deixa de convidar-nos a entrar em lógicas de pensamento não muito habituais em função do nosso assumido racionalismo cartesiano.
Não será pois por admiração pelo estilo, que leio Murakami sem jamais me entusiasmar. Mas interessam-me outras idiossincrasias como as que estão subjacentes à cultura japonesa de que ele é, hoje, um dos principais divulgadores...
Nos dois primeiros volumes da trilogia «1Q84», os títulos dos capítulos alternam entre Aomame - a vingadora, que elimina homens identificados como agressores das esposas ou violadores de quaisquer outras mulheres, e já abordada no texto anterior - e Tengo, um jovem professor de matemática, amiúde assombrado por uma recordação de quando contava apenas ano e meio de idade: “Por vezes o episódio demorava trinta segundos a passar, outros prolongava-se por mais de um minuto. Durante esse tempo, repetia-se automaticamente a mesma imagem, como se estivesse a passar num aparelho de vídeo programado para aquela função. A mãe deixava descair as alças da combinação e o homem punha-se a chupar os mamilos endurecidos. Ela fechava os olhos, deixava escapar um suspiro profundo.” (pág.30)
Essas reminiscências distantes teriam, em seu entender, algo a ver com reações psicossomáticas, que o acometiam sem pré-aviso: “Daquela vez o ataque foi dos grandes. Tengo fechou os olhos, levou o lenço à boca, como sempre, e mordeu-o com força. Não podia dizer quanto tempo aquilo durou, com base no seu estado de exaustão. Sentia-se fisicamente esgotado, mais cansado do que nunca. Passou-se algum tempo até que conseguisse abrir os olhos. A sua mente queria despertar, mas os músculos e os órgãos internos resistiam. Como um animal em estado de hibernação, que acordasse do seu sonho antes de tempo, na estação errada.” (pág. 31)
Além de professor, Tengo também tem a escrita como hobby, quer praticando-a, quer ajudando um editor, Komatsu, a escolher os melhores manuscritos candidatos ao prémio literário da revista por ele editada.
Mas, agora, Komatsu desafia-o para um projeto diferente: pegar num desses manuscritos, da autoria da jovem adolescente Fuka-eri e reescrevê-lo para manter-lhe a excelente história embora alterando totalmente a incipiente escrita. Com o título de «A Crisálida de Ar» contariam com um forte candidato a um dos principais prémios literários japoneses.
“A questão é muito simples. - continuou Komatsu, a agitar a colher de chá ao sabor do improviso - Reunimos dois escritores e criamos um novo autor. Juntamos o teu estilo perfecionista à história em bruto da Fuka-eri. Parece-me ser a combinação ideal.” (pág. 47)
Apesar de considerar o projeto como algo fraudulento, Tengo acaba por aceder à transformação do manuscrito da adolescente até pelo facto de se ter deixado sugestionar pelo sortilégio do que ele sugeria.
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