Houve um tempo em que frequentávamos o Quarteto para dar alimento aos nossos gostos cinéfilos. Depois, as salas de Pedro Bandeira Freire fecharam, mas passámos a contar com as do King para escaparmos ao tipo de cinema da pipoca e da coca-cola.
Encerradas as salas de Paulo Branco junto à avenida de Roma quase ficámos privados desse tipo de cinema incompatível com a lógica dos centros comerciais.
A abertura do Cinema Ideal, ali ao Camões, veio preencher essa lacuna e tornar-se doravante no roteiro obrigatório de quem aprecia os filmes enquanto expressão artística e não como se se tratasse de mais uma mercadoria.
Não admira que esteja agora ali em exibição a versão longa de «Os Maias», realizado por João Botelho.
Embora seja possível encontrar versões mais curtas noutros ecrãs, aquela que verdadeiramente nos interessa é esta de mais de três horas de duração em que o realizador tem mais tempo para cumprir o propósito de seguir fielmente a intriga descrita por Eça de Queirós. E, porque o orçamento não era propriamente elástico, Botelho socorreu-se do pintor João Queirós para a criação de cenários, que dão um ar teatral ao filme, mas desmentido pelo cuidado com que o encadeamento de enquadramentos é estabelecido. Ao contrário do que ouvi a outros espectadores, não estamos perante «teatro filmado», mas sim face a Cinema com c grande.
Para mim, que lera a obra literária há uns bons quarenta anos, o filme representou mais do que a oportunidade para recordar o que a usura do tempo já apagara. Mas, mais do que isso, foi possível reencontrar a cultura da Lisboa dos finais do século XIX e o humor, com que Eça vai compensando o lado mais dramático da intriga romântica. Imperdível a cena em que Carlos Eduardo e João da Ega estão prostrados pela revelação do incesto e, quem se encarregara de a revelar àquele - o procurador da família Maia - entra e sai da sala preocupado por não conseguir encontrar o seu chapéu.
Tem havido quem reconheça que, apesar de ter passado quase século e meio sobre a época em que Eça situa grande parte da história, o país não mudou assim tanto: a cada passo tropeçamos num Dâmaso, que se mostra tão arrivista para poder almejar um estatuto social mais elevado do que merece, quanto intriguista para o manter; ou um público inculto, que é capaz de ir à ópera ou a um concerto para se dar ares de sofisticação, mas capaz de reagir estupidamente quando julga ouvir como tema de uma peça o termo «pateta» (e não «patética») e reage como se o estivessem a insultar.
O mundo descrito nos «Maias» é feito de homens, que corneiam os amigos ou são por eles corneados, de mulheres, que dependem financeiramente dos maridos ou dos amantes, mas iludem a rotina das suas vidas aborrecidas com as aventuras extraconjugais e em que meio mundo acorre ás salas do Chiado para ouvir quem tem dotes de retórica, mesmo que nada faça sentido por trás dos seus discursos palavrosos. Até porque estamos num tipo de sociedade onde o que importa é ver e ser visto!
É também um mundo em transição dos valores de uma aristocracia rural, muito enfeudada na sua interligação ao clero serôdio, para os das modas vindas de Paris, por muito que elas em nada condigam com a identidade de quem acriticamente as assimila e reproduz.
«Os Maias» garantiram, pois, umas horas de grande prazer tanto mais que representa o melhor filme de quantos vi de João Botelho, reencontrando-se algo do humor de «O Fatalista», que ele realizara em 2005. em suma, uma obra que muito se recomenda...
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