Embora este seja o (des)governo, que pior tem tratado a Cultura em geral, e o cinema em particular desde o 25 de abril, os acasos da distribuição cinematográfica permitem-nos ter ao mesmo tempo nos ecrãs nacionais os mais recentes filmes de João Botelho e de Sérgio Tréfaut.
Sobre o primeiro ficou ontem registado neste blogue o meu entusiasmo. Sobre o filme de Sérgio Tréfaut o entusiasmo não é menor, porquanto ele reflete maravilhosamente a riqueza do cante alentejano e das idiossincrasias ligadas ao povo que o criou.
Naturalmente que não consigo ser objetivo nesta opinião: cá em casa, desde que tivemos a oportunidade de conhecer o Sérginho, quando ele era ainda um adolescente acabado de chegar ao Portugal de Abril, a consideração pelo seu talento e entusiasmo só se foi consolidando à medida, que lhe íamos conhecendo as sucessivas obras.
Também o ligamos, desde sempre, à personalidade ímpar do tio, esse Urbano Tavares Rodrigues, que sempre nos motivou uma enorme admiração não só pelo seu talento de escritor, mas também pela generosidade de que sempre deu mostras para quem teve a oportunidade de o conhecer pessoalmente.
É claro que a empatia do realizador com o Alentejo torna-se perfeitamente natural pelo facto de ser esse o espaço natal desse tio e do pai, Miguel, e que dele nunca se terão desviado sentimentalmente por muito que o futuro os tivesse sedentarizado em Lisboa ou noutras grandes cidades latino-americanas ou europeias.
E há ainda a memória íntima de um passado distante, quando ainda criança vivia em frente à igreja do Monte da Caparica - então centro da aldeia para onde estavam a convergir mutos alentejanos dispostos a procurarem emprego na grande Lisboa - e numa taberna diante das janelas dessa casa, esse tipo de canto começava a desfiar-se ao fim do dia e ia avançando pela calada da noite.
São, pois, muitas as razões subjetivas para mais do que gostar do filme de Sérgio Tréfaut. Mas esse juízo de absoluta rendição manter-se-ia mesmo que elas não existissem. É que a beleza de tal canto coletivo espelha a essência de um povo sofrido, a quem o fascismo tanto causticou e que nele encontrou forma de catarse e de revolta. E a câmara fixa-se nos rostos, ouve-lhes as palavras e as canções, mas também se atarda na beleza da paisagem feita de uma paleta de cores e de tons sem fim e de linhas curvas donde se recortam as azinheiras, os sobreiros e as searas.
É, pois, um filme para ver mais do que uma vez. Porque, além do propósito utilitário de registar uma cultura em riscos de desaparecimento, consegue abrir campo à esperança dos que pela sua juventude já estão distanciados das origens geradoras desse lamento cantado, e se mostram decididos a pegar no testemunho não o deixando morrer!
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