quarta-feira, setembro 03, 2014

LIVRO: «A Mancha Humana» de Philip Roth (VII)

E vamos chegar, enfim, ao final do romance de Philip Roth, com Les Farley a visitar uma réplica do Muro de Washington com o nome dos que morreram no Vietname. É aí que decide o que irá fazer.
Para Roth fica a oportunidade de, através deste personagem perturbado, revisitar um dos grandes conflitos em que a América se envolveu no século XX, com todas as consequências negativas dele colhidas. Neste caso a obsessão homicida de Les, que quererá matar a ex-mulher e um amante que, pela idade e cultura, eram a sua antítese. Daí o ódio visceral, que o guiaria: “Parecia sereno, mas isso era impostura. Tomou a sua decisão. Usaria o carro. Acabaria com todos, incluindo ele próprio. Ao longo do rio, iria direito a eles na mesma faixa de rodagem, na faixa deles, na curva onde o rio vira.
Tomou a sua decisão. Não tem nada a perder e tem tudo a ganhar. Não se trata de uma questão de se e se aquilo acontecer, ou se eu vi isto ou se eu pensar isto, faço-o; caso contrário, não faço. Tomou a sua decisão tão definitivamente, que já nem pensa. Está numa missão suicida e, interiormente, numa agitação incontrolável. Não há palavras. Não há pensamentos. É só ver, ouvir, saborear, cheirar: é fúria, é adrenalina e é resignação. Não estamos no Vietname. Estamos para além do Vietname.” (pág. 272)
As coisas não se passarão propriamente como o assassino imaginara, já que escapa ileso e sem que ninguém lhe adivinhe a autoria do acidente de Coleman e de Faunia. Apenas Nathan suspeita do sucedido, mas não consegue convencer as autoridades a investigarem a sua tese.
Por essa altura, para além da amargura suscitada pela morte do amigo, o escritor dirige a sua aversão para Delphine, a professora, que mobilizara professores e estudantes para acusar Silk de racismo e, agora quer fazer crer ter sido ele a enviar em seu nome uma mensagem para encontros românticos, que por engano ela própria enviara para uma extensa mailing list da universidade:
“Não é necessário que o perpetrador tenha algum móbil, não é precisa nenhuma lógica, nenhuma fundamentação racional. Basta um rótulo. O rótulo é o móbil. Por que fez Coleman Silk isto? Porque ele é um este, porque ele é um aquele, porque ele é ambas as coisas. Primeiro um racista e agora um misógino. O século vai já demasiado longo para lhe chamarem comunista, embora noutros tempos o rótulo tivesse sido esse. Um ato misógino cometido por um homem que já mostrou ser capaz de fazer um abjeto comentário racista a expensas de uma estudante vulnerável. Isso explica tudo. Isso e a loucura.
O demónio dos lugares pequenos: a mexeriquice, a inveja, o azedume, o tédio, as mentiras. Não, os venenos provincianos não ajudam. Aqui as pessoas aborrecem-se, são invejosas, a sua vida é o que é, e será sempre, e por isso, sem questionarem seriamente a história, repetem-na: ao telefone, na rua, na cafetaria, na sala de aulas. Repetem-na em casa aos maridos e às mulheres. Não se trata apenas do facto de, por causa do acidente, não haver tempo para provar que se trata de uma mentira ridícula; para começo de conversa, se não tivesse havido o acidente ela não teria podido contar a mentira. Mas a morte dele é a sorte dela. A morte dele é a salvação dela. A morte intervém para simplificar tudo. Todas as dúvidas, todas as desconfianças, todas as incertezas são afastadas pelo maior de todos os redutores que é a morte.” (pág.306)
Quando assiste ao enterro com que a universidade terá querido corrigir os danos entretanto feitos à reputação do seu antigo reitor, Zuckerman sente que ainda falta revelar-se algo: “Eu sei, é verdade, que não existe completude nem justa nem perfeita consumação, mas isso não significa que, parado apenas a alguns passos de onde o caixão repousava na sua cova recém-cavada, não pensasse obstinadamente que aquele fim, mesmo congeminado para restituir para sempre a Coleman o seu lugar de figura prestigiada da história da Universidade, não bastaria. Havia demasiada verdade ainda oculta. (pág. 331)
Esse algo surge na pessoa da anciã negra Ernestine, que também assistira ao funeral e lhe revela ser a irmã do próprio Coleman. Ele nascera, de facto, numa família negra e aproveitara o tom mais claro de pele para se fazer passar por branco ao alistar-se para o serviço militar. Com essa opção distanciara-se da mãe e dos irmãos, a quem raramente contactava.
E esse é o maior paradoxo com que se conclui o romance: não haveria, de facto, alguma razão  nessa acusação de racismo se, por motivo de sobrevivência, Coleman levara toda a vida a rejeitar a negritude de que geneticamente era feito?


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