terça-feira, junho 19, 2018

(DL) O que está em causa quando nos querem impingir Orwell sob a forma de romance ou de filme?


Esta semana o canal franco-alemão ARTE exibiu em horário nobre a versão animada de «O Triunfo dos Porcos», realizada em 1954 por dois dos principais realizadores de animação do pós-guerra. A quase três quartos de século de distância da publicação do romance, que lhe deu origem, é bom que compreendamos as razões, porque, com exagerada frequência, ele costuma ser difundido. Lembrando, nomeadamente, que quando o espião Carlucci por aqui andava a sabotar o quanto lhe era possível o curso da Revolução de Abril, esta fábula sobre animais sujeitos a um ditador numa quinta aprazível colhia exagerado destaque junto dos que ansiavam por esmagar os anseios de utopia e reencarreirar o país para a lógica dos negócios «as usual».
Porque será que a CIA se empenhou tanto na passagem ao cinema do romance de George Orwell sobre o estalinismo, subsidiando-o principescamente? Por fervor democrático? Balelas!  Nessa década a agência de espionagem norte-americana estaria envolvida em diversos golpes de estado destinados a impor ditaduras simpáticas aos olhos imperialistas da Casa Branca desrespeitando a vontade democrática dos respetivos povos.
Na realidade o que a CIA pretendia era a depreciação, tão maniqueísta quanto possível, do comunismo como solução política preferida das classes mais exploradas para verem melhoradas as suas condições de vida. E o livro do antigo trotsquista, que andara pela Guerra Civil Espanhola e depois regressara à Inglaterra a execrar tudo quanto antes acreditara, prestava-se na perfeição aos objetivos da agência sedeada em Fort Langley.
A História tem sido fértil em demonstrar-nos que os mais veementes críticos de uma qualquer fé são sempre os que nela terão acreditado piamente e com igual fervor ao demonstrado quando a decidem execrar. A atual direita comentadeira nacional está pejada de antigos maoístas e marxistas-leninistas, que olham para os seus passados como se nele tivessem andado de mãos dadas com o Diabo.
Em 1945, quando escreveu o romance, que lhe daria tão bom acolhimento nos corredores da espionagem norte-americana, Eric Blair (o verdadeiro nome de Orwell) já tinha a morte agendada pela tuberculose, que o levaria de vez em 1950. Mas ainda utilizaria os últimos anos de vida para prosseguir nesse afã ideológico, criando o outro romance, que os mesmos interesses ideológicos promoveriam como obra-prima, apesar de, literariamente,  ser coisa banal: «1984».
É por isso mesmo que o filme de Batchelor e Halas tem esse pecado original: é mera obra de propaganda, decerto muito bem construída, mas destinada a cumprir o desígnio de, diabolizando o comunismo, contribuir para o prolongamento de um sistema económico execrável, fundamentado na injustiça e na exploração da maioria em proveito de exíguas minorias plutocratas.
Significa isso a necessidade de promover uma redenção do modelo estalinista de implementação do projeto marxista? Claro que não: o que correu mal na antiga União Soviética - mormente com  os julgamentos como meros alibis de execuções praticamente sumárias,  com os gulags e a privação de liberdades fundamentais - tem de ser perspetivado criticamente dentro do contexto em que aconteceu, para evitar que se replique em situações futuras semelhantes. Mas a verdade é que a diabolização do estalinismo é feita com um ênfase, que não se verifica com o catolicismo, apesar dos crimes da Inquisição continuarem a ecoar nas campanhas em que vemos os seus prosélitos alinharem sempre que têm a oportunidade de causar dano na evolução civilizacional (vide o caso recente do direito á morte assistida!), ou com o capitalismo em geral, cuja responsabilidade nos genocídios e na miséria homicida em quase todas as latitudes, causou e continua a causar mortes a uma escala nunca atingida pelo sistema alternativo, cuja emergência procura evitar. A própria ameaça à viabilidade de vida humana no planeta decorre da continuação dessa acelerada corrida para o abismo promovido por um capitalismo cego, que continuará a apostar no contínuo crescimento da produção de mercadorias por muito que isso implique o esgotamento das riquezas naturais e o aumento das catástrofes humanitárias decorrentes das alterações climáticas.
Não foi por acaso que Orwell escolheu um porco para personificar o tirano da história  Tendo em conta a desafeição religiosa de judeus e muçulmanos por tal animal essa opção era oportuna numa altura em que muitos dos intelectuais afetos ao marxismo provinham da primeira daquelas culturas e as lutas independentistas do Terceiro Mundo radicavam  em grande parte nas da segunda.
É certo que a luta de todos os animais da quinta contra o déspota é incitada pelo porco ancião, o que legitimaria a leitura da usurpação da utopia inicial sem propriamente a pôr em causa, mas não fica sugerida a inevitabilidade dessa ocorrência dentro da dinâmica de um processo, que se pretendia transformador?
É por tudo isso que, quando vemos grandes incentivos à leitura dos romances derradeiros de Orwell ou à apreciação cinéfila das suas várias adaptações deveremos ter em conta o que está em causa.

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