quarta-feira, junho 20, 2018

(DIM) «A Noite de Varennes» de Ettore Scola (1982)


Em maio de 1981 a eleição de François Mitterrand para o Eliseu parecia tornar possível uma transformação tão decisiva na política europeia quanto a ocorrida quase dois séculos antes, quando o povo de Paris tomara a Bastilha e lançara o início da Revolução Francesa. Os que então embandeiraram em arco não tardariam a ficar dececionados com o quão pouco mudaria com essa presidência socialista, que só contribuiu para uma maior consolidação dos interesses dominantes em detrimento dos que poderiam aspirar a melhorias significativas na sua qualidade de vida.
Na reflexão que Ettore Scola faz a respeito dos acontecimentos de 1791, e que se poderia imaginar positivamente contaminada por essa vitória recente da esquerda francesa, há a amarga premonição do que viria a suceder, porque mais do que os homens a mudarem a realidade, pressupõe ser esta a transformá-los, gerando uma nova sociedade, que acaba por não se revelar melhor do que aquela que veio substituir.
A exemplo do que víramos em «Um Dia Inesquecível», Scola começa por nos dar uma contextualização da história que iremos ver a seguir, recorrendo desta feita a um artifício de feira ambulante (a camera oscura). É assim que nos é dado a saber o que ocorrera nos dois anos anteriores a este dia 21 de junho de 1791, data em que a narrativa se enceta quando Restif de la Bretonne se apercebe da estranha carroça, que sai do Palácio Real e toma a direção da fronteira com o Luxemburgo. Mas, mais do que a reconstituição histórica, Scola quer-nos envolver no espírito dessa época, quando os debates políticos eram intensos no seio de uma turbulência social quase caótica. Estavam em causa temas como a liberdade de expressão, as desigualdades, as convulsões sociais, a brutalidade e o lado trágico dos conflitos.
O pretexto para explorar todos esses temas levou Scola a optar pelo road movie focalizado nesse escritor libertino com espírito de repórter, que não descansa enquanto não descobre o destino da tal carroça. Depressa acompanhado de outro conhecido sedutor, Casanova, conseguem lugar numa diligência, que abriga no seu microcosmos, toda a realidade social da época nas suas diferentes classes, porque abriga gente da nobreza, da burguesia e do povo, todos eles com as respetivas opiniões a respeito do que se passa à sua volta.
Ao contrário de Restif de la Bretonne, que está conquistado para a causa revolucionária, Casanova é um símbolo do Antigo Regime. Velho e cheio de apetite - mas já não o de cariz sexual -, ele exprime a indignação dos que não se conformam com a perda dos privilégios e mostra-se incapaz de compreender aquele mundo em transformação.
Outro intelectual presente, o americano Thomas Paine, é o estrangeiro fascinado por tudo quanto veio descobrir deste lado do Atlântico, que tanto o impele a aceitar as mudanças, como o confronta com as suas ambíguas contradições.
A condessa Sophie de la Borde, dama de companhia de Maria Antonieta a quem procura juntar-se, sente uma irreprimida compreensão por tudo quanto está a virar do avesso o seu mundo ao qual não deixará, porém, de manifestar fidelidade.
A viúva que tem vinhas e se mostra racista - sugere a conhecida Veuve Cliquot - é, igualmente, contraditória, porque tão só vê a oportunidade de uma derradeira e fogosa aventura amorosa logo sente atração pelos novos valores, que tendem a tornar obsoletos aqueles que sempre tinham sido os seus.
O cabeleireiro pederasta simboliza aqueles que vindos das classes inferiores, ficaram rendidos ao convívio próximo com os que consideravam poderosos e olham os que haviam ficado cingidos ao espaço social donde tinham ascendido como sendo «feios, porcos e maus»...
E há Emile, o jovem estudante radical, que viaja no teto da diligência e cujo radicalismo intolerante já anuncia o período que se seguiria, aquele que se designaria como do Terror. É ele quem melhor representa o inconformismo popular com uma Revolução, que muito prometera, mas pouco propiciara. Razão para dar um salto em frente mais ousado, porque recorreria intensamente ao uso da guilhotina.
Em suma, num filme com um naipe prodigioso de grandes nomes do cinema a interpretarem os diferentes personagens, temos a abordagem da eterna luta entre o Velho e Novo, que continua tão atual na nossa contemporaneidade.

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