terça-feira, junho 19, 2018

(AV) Schiele no centenário da sua morte


Este é o ano do centenário da morte do pintor Egon Schiele, que está a motivar exposições e evocações da sua obra sem que os ecos de tais comemorações cheguem a este cantinho à beira-mar plantado.  É  pena porque ele criou uma das mais audaciosas e fulgurantes obras do século XX, interrompida pela morte prematura, quando apenas contava 28 anos. O seu legado artístico foi, porém, suficiente para ser reconhecido como aquele que pintava a luz dos corpos.
Alain Fleischer, autor de uma obra de referência sobre o pintor - «Le dernier tableau de Schiele» (2008) - refere como ele contribuiu para a imagem trágica do fim de uma época em Viena, em vésperas da implosão do império austro-húngaro.  Como se a sua morte fizesse parte de um terramoto histórico, que viraria do avesso todos os equilíbrios políticos existentes na época em que viveu.
A capital austríaca era sinónimo de cosmopolitismo com saberes e artes a revelarem um enorme dinamismo, uma incomparável criatividade. Músicos, pintores, psicanalistas, filósofos, escritores: viviam ali alguns dos maiores talentos de então. Mas, ao invés, a burguesia local era de uma atroz hipocrisia, porque a prostituição, inclusive a infantil, constituía um fenómeno social de grandes dimensões. As esposas vienenses não eram chamadas a servir a libido dos esposos, que lhes preferiam as meretrizes dos bordéis. E, no entanto, olhariam para as obras e os comportamentos de Schiele como justificando a sua veemente indignação. Será que adivinhariam nas modelos a que ele recorria - nesses mesmos prostíbulos - aquelas com quem os maridos fornicavam antes de regressarem ao reduto caseiro para retomarem a pose de irrepreensíveis chefes de família? Não é por acaso que se conota essa época com a expressão do primado das públicas virtudes em concomitância com os vícios privados.
Valia a Schiele o conforto dos amigos, nomeadamente de Klimt que, sendo mais velho, lhe serviria igualmente de mentor. Foi por seu intermédio, que o jovem artista conseguiu escapar à miséria extrema e aceder a um relativo desafogo, insuficiente no entanto, para o poupar a si e à esposa do trágico fim que os esperava. De facto, o casal Schiele ficou incluído no extenso rol de vítimas da gripe espanhola que, há um século, levou tantos artistas, incluído o nosso Amadeo de Sousa Cardoso.
Sem desvalorizarem a qualidade dos quadros do artista, alguns críticos preferem os desenhos por neles ser notável a representação da magia dos corpos através de linhas traçadas com uma segurança, que excluía qualquer retoque. Mas também dão assinalável importância ás aguarelas onde o enchimento com cor só acontecia após o traçado do desenho a marcar-lhes as fronteiras. Também nelas a prévia definição do que seria o motivo da obra através de linhas fundadoras, antecedia o recurso às cores.
Essa opção poderá explicar-se no convívio infantil do futuro artista com as linhas ferroviárias, que lhe passavam á porta de casa e davam emprego ao progenitor.  Nunca mais essa orientação para compor o enquadramento visual o abandonaria.
A razão porque as suas obras causavam tanta histeria nalguns meios vienenses tinha a ver com a importância por ele atribuída ao sexo feminino nos seus nus. Quase sempre os corpos parecem subalternizar-se para possibilitarem a tendência do espectador para esse centro de atenção entre as pernas da mulher representada. Como se Schiele apressasse as pinceladas de todo o quadro para se concentrar, deleitado, nessa zona específica.

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