domingo, junho 10, 2018

(DL) «Florinhas de Soror Nada» de Luísa Costa Gomes


Não concordo propriamente com o que se diz na contracapa de «Florinhas de Soror Nada», o mais recente romance de Luísa Costa Gomes. De facto a vida de Teresa Maria, a protagonista, não terá tanto de singular, quanto ali se preconiza. Na geração de meninas nascidas antes da Guerra Colonial, criou-se uma tal adoração pelas santas mártires, que a obrigação em as imitar na devoção e nos sacrifícios era regra a cumprir. Não tinham tais histórias uma vertente erótica, que acertava em pleno nos devaneios a quem se impunham condutas castas, sem lhes evitar os pensamentos pecaminosos?
Entre a infância passada na casa onde pai e mãe eram quase invisíveis um para o outro, a puberdade num colégio de freiras donde se veria expulsa por indomada irreverência, a juventude rebelde, a vida adulta aburguesada e a velhice em acelerado processo de demência, o percurso de Teresa Maria afigura-se muito semelhante ao de outras mulheres da sua geração. A falta de novidade - até porque a sua existência quase nunca se relaciona com o contexto histórico a que as suas várias fases vão correspondendo - poderia tender para uma relativização do valor do romance, mas tudo se altera na forma como Luísa Costa Gomes a explora. Porque trata-se de uma obra muitíssimo bem escrita, com um frasear pouco canónico, mas respeitador de cada estado de alma sentido pela personagem em cada momento. A prosa ora evolui numa tranquila arquitetura da narrativa, quando se detém num ou noutro episódio em concreto, ora ganha uma vertiginosa sucessão de descrições quando o tempo se acelera e se precipitam acontecimentos atrás de acontecimentos.
Um dos artifícios de que Luísa Costa Gomes se socorre é o de um breve levantar do véu sobre o que mais adiante sucederá, logo regressando ao ponto de partida para o detalhado desbravar de tudo quanto irá suceder até ao reencontro com essa antecipada revelação. Não é lisonjeiro o papel dos homens ao longo da história, porque ora são violadores, ora se revelam abúlicos companheiros de jornada, que quase correspondem a mais uma peça de mobiliário numa casa dificilmente enquadrável no conceito protetor de lar. Nesse sentido há uma sugestão feminista, que prima pela subtileza, mais do que pelo recurso a estereótipos redutores.
É romance que dá prazer na sua leitura, sobretudo para quem, já entrado nos anos, faz corresponder muitas das situações descritas com as vividas num contexto social e político, que se foi forçado a partilhar. Para quem viveu as agruras de um fascismo ordinário (nos seus múltiplos sentidos!) e, depois, abdicou dos amanhãs que prometiam cantar porque valores mais altos - os da sobrevivência familiar - se impunham, «Florzinhas de Soror Nada» inspira um permanente diálogo entre o conteúdo e o balanço de vida que sugestiona em quem o lê...

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