quinta-feira, junho 21, 2018

(DIM) «O Leopardo» de Luchino Visconti


A primeira vez que Luchino Visconti desembarcou na Sicília foi para rodar um documentário sobre a luta de classes. Anos depois, ele que era um aristocrata com ideias de esquerda, regressou para fazer um filme memorável sobre a decadência da nobreza local, tornando inesquecível a frase: «se queremos que tudo continue igual, teremos de mudar alguma coisa».
A Sicília, que quis testemunhar, era a do palácios com paredes de cor pastel e, no interior, com frescos dourados, vendo-se das suas janelas, ou varandas, as montanhas áridas a perder de vista ou o azul do Mediterrâneo. No fundo é a Sicília barroca, que Lampedusa descreveu no seu romance «O Leopardo», reproduzindo o que ele próprio conhecera, porquanto nascera no seio dessa mesma decadente aristocracia da ilha. Visconti, que quase se sentia um gémeo do escritor, por partilhar com ele as mesmas origens, só podia ficar rendido à possibilidade de adaptar essa obra literária ao cinema.
Foi na Villa Boscogrande, no noroeste da ilha, que Visconti instalou a equipa de filmagem, fazendo-a residência do seu protagonista, o príncipe Fabrizio de Salina, cuja lucidez impressiona por se sentir o  derradeiro símbolo de um mundo em acelerada mudança, onde já não faria qualquer sentido a ostentação de poder e de riqueza, que esse palácio comportava.
Construído no século XVIII por inspiração de Versalhes, tratava-se de um local excecional pela elegância do décor. Ideal para explicitar o seu carácter de bolha onde essa aristocracia se enclausurava para defender-se de tudo quanto se passava no exterior do seu parco domínio.
Uns quantos quilómetros para sul Visconti «descobre» em Cimina a residência de verão da família Salina, que se torna num outro local da rodagem do filme. Decorrerão aí algumas das cenas mais explicitas do confronto entre a degenerescência da classe feudal e a voracidade da ambiciosa burguesia, que a quer substituir enquanto fulcro do poder político, económico e social. Nas cores em permanente mudança, devido à alternância do sol com a passagem das nuvens, revela-se a violência latente da paisagem.
Na tradição do neorrealismo italiano Visconti fundamenta-se nesses contrastes para criar uma estética com um sentido poético. De um lado a beleza bruta das ruas populares, do outro a exuberância barroca da Igreja Santa Maria Madalena associada à aristocracia. Tão só chegada à aldeia de veraneio, logo a família do príncipe procura-a para assistir à missa. A procura da intemporalidade do poder divino surge-lhe como porto de abrigo para as mudanças, que adivinha incontornáveis.
Enquanto os nobres vão-se acantonando no passado nos refúgios dos seus domínios provinciais, a capital, Palermo,  está a ferro e fogo: em 1861 as tropas de Garibaldi vencem a luta pela unificação de toda a Itália derrotando as tropas dos Bourbons. Nalgumas cenas o realizador quis reproduzir fielmente imagens icónicas dessa Revolução.
A apoteose final do filme de Visconti, com a cena do baile, foi rodada no Palácio di Gangi, onde a sala dos Espelhos acaba por ser o espaço de revelação dessa transformação consumada em que um casamento servirá de elo de ligação entre a antiga classe dominante e a que lhe tomará o lugar aglutinando-a.

Sem comentários: