quinta-feira, junho 14, 2018

(DIM) «Um dia inesquecível» de Ettore Scola (1977)


Em 6 de maio de 1938 Hitler fez uma importante visita de Estado a Roma, fazendo-se acompanhar dos principais responsáveis do poder nazi. Na iminência de atacar os Sudetas, ele pretendia reduzir ao máximo a oposição das demais potências europeias, sendo-lhe essencial garantir a neutralidade de Mussolini. Este já ocupava o poder em Itália há dezasseis anos e viu na visita a possibilidade de coreografar uma enorme receção a quem já considerava um aliado. As cerimónias para tal organizadas foram das mais impressionantes, a que a cidade eterna assistira desde a sua tomada do poder. E, entre os muitos miúdos, que desfilaram perante o führer estava um petiz de oito anos chamado Ettore Scola todo ufano pela sua condição de balilla.
Foi essa experiência pessoal, que ecoou no realizador, quando procurou matéria narrativa para o filme subsequente a «Feios, Porcos e Maus». O tema deveria ser o do encontro entre duas solidões, que ele personificou numa dona-de-casa convencida das virtudes do papel a ela imposto pelo regime fascista e num homem de meia idade em vias de ser deportado pela não conformidade dos seus comportamentos políticos e sexuais. Tendo como fundo sonoro a transmissão radiofónica das cerimónias às quais compareceram quase todos os habitantes da cidade, Antonietta e Gabrielle vão conhecer-se, disputar-se nas diferenças que os começam por opor, mas aproximar-se o suficiente para viverem uma brevíssima relação amorosa. Ela, que é o elo mais fraco da típica família fascista, comandada por um bruto machista, reduzida á função de parideira de muitos filhos e quase não fazendo outra coisa que deles cuidar, irá evoluir da inconsciência primitiva para a contestação, mesmo que íntima, de todas as suas crenças ideológicas. Numa das cenas finais, quando Gabrielle é levado pela polícia para a ilha onde ficará enclausurado, ela vê-o do seu andar, lembrando-nos uma princesa agrilhoada numa torre, a pedir que a venham libertar. Razão para esperarmos que, tão só derrubado o fascismo, as Antoniettas de então tenham encontrado outros redentores, que não esses «chefes de família» abjetos, graças aos quais a ditadura perdurara mais de vinte anos.
Trata-se, pois, de um filme extremamente atual à luz do que vem acontecendo em Itália com a mentalidade fascista a reinstalar-se no quotidiano e a condenar o que é diferente do que institui como normativo. Mormente relativamente a esses náufragos do «Aquarius» a cuja má sorte o novo governo respondeu com a sua atitude assassina, desumana.
Para concretizar o projeto Scola seguiu os princípios do teatro clássico com o respeito pela unidade do espaço, da ação e do tempo. Traduziu-o em filme, mas não seria complicado que um qualquer encenador decidisse adaptar a história para um palco teatral.
O cenário escolhido também revela uma inteligente lucidez: o filme foi rodado num edifício romano, que corresponde ao paradigma da arquitetura fascista da época da sua construção com a possibilidade de, do seu espaço, a porteira vigiar tudo quanto nele se passa. Ora sabe-se de sobra como os regimes ditatoriais sempre gostaram de contar com a colaboração ativa desse tipo de profissões incumbidas de acompanharem ativamente a vida de quem habita as adjacências do seu espaço.
A forma como a câmara tudo capta também acentua essa sensação de opressão. Ora espreita Antonietta e Gabrielle por trás de janelas, ora deles se aproxima de súbito como que querendo apanhá-los em falso, ora muda de espaços com a rapidez furtiva dos pides e delatores. E, porque se vive numa tremenda cinzentude a cor do filme foi trabalhada para esbater o cromatismo das cores, aproximando-as tanto quanto possível do preto-e-branco.
Acresce, a concluir, o facto de Scola atribuir a Sophia Loren e a Marcello Mastroianni a interpretação de personagens nos antípodas dos que, habitualmente, se lhes colava, porquanto não só desfeia quem era ainda um sex-symbol consagrado, como incumbia o parceiro de ser o contrário do macho latino de tantos e tantos filmes da década anterior.

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