quinta-feira, agosto 21, 2014

LEITURAS: «A Mancha Humana» de Philip Roth (III)

Datado de 2001, «A Mancha Humana» é um dos romances mais interessantes de Roth, até pelo facto de nele convergirem muitos dos temas mais comuns em toda a sua vasta obra:  a dificuldade de se ser quem é perante uma sociedade depressa tomada pela tentação de estigmatizar quem, por razões de pele, de religião, de opinião ou de comportamento, não se coaduna com o que é tido como maioritariamente aceite.
Na terceira parte desta abordagem do romance, Coleman confessa-se ao seu amigo Nathan Zuckerman como alguém muito diferente do que lhe surgira pela frente quando se haviam tornado primeiro vizinhos, e depois amigos: “Antes de se tornar um reitor revolucionário, antes de se tornar um grave professor de estudos clássicos - e muito antes de se tornar o pária de Athena -, ele fora, além de um rapaz estudioso, um rapaz adorável e sedutor. Arrebatado. Travesso. Um pouco diabólico, até, um Pã de nariz arrebitado e pés de cabra. Noutro tempo, antes de as coisas sérias se imporem por completo. (pág. 37)
Se a vida já não estava a ser fácil para o velho professor por causa do equívoco causado pela utilização de uma expressão tida como racista, ainda pior se irá tornar quando começa a ser evidente a sua ligação amorosa com uma empregada doméstica quase analfabeta chamada Faunia Farley: “Trinta e quatro anos de surpresas selvagens deram-lhe sabedoria. Mas é uma sabedoria antissocial muito tacanha. Selvagem, também. É a sabedoria de alguém que não espera nada. É essa a sua sabedoria, é essa a sua dignidade, não é uma sabedoria negativa e não pertence ao tipo que nos mantém no rumo, dia após dia. Trata-se de uma mulher cuja vida tem tentado esmaga-la quase desde que ela existe. Tudo o que aprendeu vem daí.” (pág. 39)
Mas o passado de Faunia tivera um primeiro capítulo, que não pressuporia aquilo em que se viria a converter, já que nascera numa família rica do Sul do país e tivera uma infância privilegiada.
Tudo mudara quando os pais se divorciaram, tinha ela cinco anos. Quando a mãe voltara a casar, o padrasto passara a abusar dela, razão bastante para se pôr a milhas de casa, já que nem a mãe, nem o psiquiatra acreditavam na sua versão da realidade.
O casamento com um veterano do Vietname fora uma falsa solução, já que se via sujeita a sucessivas agressões. Daí também dele se ter separado. Mas, quando uma noite, estava com o novo namorado no carro estacionado perto de casa, não vira o incêndio, que lhe destruiria a casa e matara os dois filhos por asfixia. 
Farley nunca lhe perdoara o descuido que causara a morte das crianças.
É pois uma mulher mais complexa do que aparentaria a sua simplicidade a que torna Coleman reconciliado com a vida: “Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela por causa dessa emoção. Não é de família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de grandes ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção.” (pág. 45)
E, como é normal nos livros de Roth, o sexo é para ser vivido intensamente: “Ele não está nisto para aprender, nem para fazer projetos, mas pela aventura, está nisto pelo mesmo motivo que ela: pelo gozo. Os trinta e sete anos que os separam concederam-lhe mais liberdade de ação. Um velho e, uma última vez, o ímpeto sexual. Há alguma coisa mais excitante para alguém?” (pág.46)
Novos entraves prejudicam, pois, o direito de Coleman à felicidade: na semana seguinte a contar a Zuckerman, ele recebe uma carta anónima: “Toda a gente sabe que explora sexualmente uma mulher molestada e analfabeta com metade da sua idade” (pág. 50)
Os olhos escondidos ameaçam empurra-lo de novo para a beira da estrada...


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