quarta-feira, agosto 13, 2014

LEITURAS: «A Mancha Humana» de Philip Roth (I)

Estamos em 1998 e, logo de início, o narrador sintetiza o debate de valores então em foco na sociedade norte-americana: “Foi o verão em que, pela milésima milionésima vez, a bagunça, o caos e a confusão demonstraram ser mais subtis do que a ideologia deste e a moralidade daquele. Foi o verão em que o pénis de um presidente esteve na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua despudorada obscenidade, confundiu uma vez mais a América”. (pág. 15)
Na época desconhecíamos que o ovo da serpente estava a incubar dentro do Partido Republicano. Já o tínhamos como o representante das ideologias mais à direita das terras do tio Sam, mas não adivinhávamos como do conservadorismo puritano de então, neoliberal de acordo com as ideias de Milton Friedman, iria emergir algo que faria os antecessores parecerem verdadeiros meninos de coro.
É nessa altura que Nathan Zuckerman, um dos mais conhecidos alter egos de Roth, conhece Coleman Silk, um professor de estudos clássicos no Athena College durante vinte e tal anos, e seu reitor durante dezasseis, que entrara em confronto com a instituição: “No verão de 1998, já ele ali estava sozinho - sozinho na grande e velha casa branca revestida de tábuas sobrepostas, onde criara quatro filhos com a sua mulher Iris - havia quase dois anos, desde que Iris tivera um acidente vascular e morrera de um dia para o outro, enquanto Coleman estava em pleno combate com a universidade por causa de uma acusação de racismo que lhe fora feita por duas estudantes de uma das suas turmas”.(pág. 16)
A exemplo de outros romances integrados no mesmo ciclo Zuckerman encontramos uma América onde o individuo pouco vale, quando contra ele se coordenam o preconceito e a mentira propagados por gente de rosto quantas vezes escondido atrás de organizações ou de multidões acéfalas.
“Foi mais ou menos a meio do seu segundo semestre de novo como professor a tempo inteiro que Coleman proferiu a palavra auto-incriminadora [“spook”, que além de “espectro” ou “fantasma”, também é vernáculo para designar “preto”] que o levaria a cortar voluntariamente todos os laços com a universidade - a única palavra auto-incriminadora das muitas milhões ditas em voz alta nos seus anos de ensino e administração na Athena e aquela que, no entendimento dele, conduzira à morte da sua mulher.
A turma tinha catorze alunos. No início de várias das primeiras aulas, Coleman fizera a chamada, a fim de decorar os nomes dos estudantes. Como na quinta semana do semestre ainda havia dois nomes a que ninguém respondia, na sexta semana Coleman iniciou a aula perguntando: ‘Alguém conhece essas pessoas? Elas existem ou são spooks??” (pág. 18)
Valeu a pena alongarmo-nos sobre estas primeiras páginas do romance por elas caracterizarem um protagonista com o seu quê de surpreendente por descobrir lá mais para o final e que alterará totalmente o sentido da leitura até ali se chegar. E não será nada que diga respeito à relação amorosa, que Coleman iniciara recentemente com uma empregada de limpeza da mesma universidade, bastante mais nova, e que voltará a incendiar a opinião de muitos dos professores e alunos contra ele...


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