quinta-feira, agosto 28, 2014

LEITURAS: «A Mancha Humana» de Philip Roth (V)

Em textos anteriores vimos como Coleman Silk foi injustamente acusado de racismo na universidade onde fora reitor e onde ainda exercia as funções de professor. Em vez de uma análise racional do que sucedera - um equívoco suscitado pelo recurso a uma palavra anódina, mas de duplo sentido - a comunidade escolar virara-se contra o velho docente e sujeitara-o a um processo de cariz inquisitorial:
“ Pessoas instruídas, doutoradas, pessoas que ele próprio contratara convencido de que eram capazes de pensar de modo racional e independente, tinham-se revelado desprovidas de qualquer desejo de avaliar a absurda acusação que lhe faziam chegar a uma conclusão adequada. Racista: este tornara-se, de súbito, o epíteto de maior carga emocional que se podia aplicar a alguém na universidade de Athena e toda a faculdade sucumbira a esse emocionalismo” (pág. 98)
Para se livrar de tal incómodo, Coleman demitira-se, mas logo enviuvara, atribuindo a morte de Iris ao desgosto pelo sucedido.
Mas numa estratégia narrativa muito comum nos livros de Philip Roth - sucessivos recuos e avanços no tempo - podemos compreender que a acusação era paradoxal, porque ele próprio fora vítima de racismo quando, ainda adolescente, frequentara um liceu onde era dos mais escuros dos seus alvos alunos: “No liceu de East Orange havia professores em quem Coleman sentia uma desigualdade de aceitação, uma desigualdade de aprovação, comparadas com as que prodigamente demonstravam aos miúdos brancos inteligentes, mas nunca ao ponto dessa desigualdade deter os seus objetivos” (pág. 118)
Até ao cumprimento do serviço militar Coleman fora sempre tido como negro, já que os pais também o eram, e por muito que a sua pele suscitasse a dúvida da ambiguidade:
“Aquilo que mais desejara desde a mais tenra infância fora ser livre: nem preto nem mesmo branco, apenas livre e senhor de si. Não pretendia insultar ninguém com a sua escolha, nem estava a tentar imitar alguém que tomasse por seu superior, nem se tratava de qualquer espécie de protesto, contra a sua raça ou a dela. Reconhecia que as pessoas convencionais, para quem tudo era pronto-a-usar e rigidamente inalterável, nunca achariam correto o que estava a  fazer. Mas ousar ser absoluta e unicamente correto nunca fora o seu objetivo.” (pág. 135)
Mas esse passado de Coleman ainda era desconhecido do narrador, o escritor Nathan Zuckerman, que escreve a sua história bastante a posteriori. Tal como para qualquer outro habitante de Athena Coleman era tido como inquestionavelmente branco.
Mas, nos textos anteriores também víramos que Coleman reconciliara-se com a vida ao iniciar uma relação amorosa com uma mulher da limpeza da universidade, quase analfabeta e com metade da sua idade. Motivo para ser alvo de cartas anónimas, mas por certo da autoria da professora francesa Delphine Roux, que o ameaçavam com novo escândalo.
Será ao procura-la no campus, que ele depara com algo de tão inesperado, quanto de inquietante: “Os homens aparentavam trinta, trinta e poucos anos. Dois usavam barba e um dos barbudos, um tipo com um comprido rabo-de-cavalo, era particularmente entroncado e tinha um aspeto bovino. Era o único que se encontrava de pé, talvez para melhor pairar sobre Faunia, que estava sentada no chão com as longas pernas estendidas á sua frente e a cabeça atirada para trás num gesto provocado pela alegria do momento.
O seu cabelo foi uma surpresa para Coleman. Estava solto. Até então vira-o infalivelmente bem preso atrás, com um elástico. Assim solto, só no leito, quando tirava o elástico e o deixava cair sobre os ombros nus.” (pág. 171)
Até que ponto valerá a pena batalhar por esse amor tardio por Faunia?

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