sexta-feira, agosto 29, 2014

FILME: “Lightening Over Water” de Nicholas Ray e Wim Wenders (1980)

8 de abril de 1979. Num dia frio e claro, Wim Wenders chega a Nova Iorque vindo de Los Angeles. Aproveita uma pausa de duas semanas no filme, que estava então a rodar («Hammett») para visitar Nick Ray na sua residência no Soho, trazendo em mente muitos dos grandes filmes por ele assinados desde «Rebel without a Cause» até ao mítico «Johnny Guitar».
A amizade entre ambos surgira dois anos antes, quando Wenders o convidara para interpretar um pequeno papel num dos seus filmes e ele aceitara. Na altura tinham partilhado muitos copos, jogos de cartas e conversas sobre cinema.
Mas agora o motivo da visita revela-se bem mais doloroso: Nick vivia os últimos dias da sua vida depois de o terem operado ao cancro por três vezes no último ano. E ambos tinham decidido traduzi-los em filme como forma de homenagem e de preservação da sua memória.
«Lightening Over Water» foi o resultado desse processo criativo com muito de mórbido, mas também de muita veneração que Wenders testemunha pelo seu mentor. Que, apesar de muito enfraquecido, ainda estava envolvido na montagem do seu derradeiro projeto: «We Can’t Go Home Again».
Para o realizador alemão tratava-se de um desafio complexo, pois poderia ser visto como uma forma de usar a fragilidade de Ray para se promover, mas é o próprio homenageado quem o dissuade desse receio.
Nessa mesma noite Wenders acompanha-o a uma conferência que ele dará na universidade de Vassar a propósito de um dos seus filmes, mas enquanto para lá se dirigiam os silêncios sobrepunham-se aos diálogos, cada qual mergulhado nos seus próprios pensamentos.
«Lusty Men» («Idílio Selvagem») é o filme que serve de mote à conferência, e Wenders considera-o o que apresenta a melhor cena de regresso a casa. Mas Ray interroga-se: o que é regressar a casa?
Comparando o processo de filmagem desse que fora um dos seus primeiros filmes com o que está a rodar com Wenders, ele diz aos estudantes que quanto mais se aproxima do final da sua vida, mais próximo fica do tipo de processo criativo desse longínquo passado, já que o filme com Mitchum baseara-se num pequeno script de 26 páginas diariamente referido e reescrito durante as filmagens.
Ademais explica que, embora pareça, «Idílio Selvagem» não é um western, mas um filme sobre o grande sonho americano de ter uma casa que se diga sua. E de alguém se sentir verdadeiramente inteiro antes de morrer.
Ora o que perturba Wenders é que a câmara vai captando as imagens de Nick a falar e revela o quão próximo está ele do fim. Uma ideia não tão notória a olho nu. Como se a câmara fosse a verdadeira revelação da realidade. Por isso sente-se perturbado.
A cena final do filme fica então definida pelo próprio Nick: um junco chinês decorado com flores vermelhas na baía do rio Hudson a fazer-se ao largo.
As noites no apartamento tornam-se cada vez mais complicadas com Nick a contas com uma tosse  incontrolável. Mas nessa forçada insónia, Wim sente-se quase culpabilizado por secundarizar o objeto retratado em proveito dos planos com que melhor o pudesse representar.
Por causa de «Hammett», Wenders  tem de ir por uns dias a Hollywood. Quando regressa, Ray está internado no Memorial Hospital num estado ainda mais fragilizado.. Ciente de que estará porventura a exigir demasiado dele, apressando-lhe o desiderato, Wenders propõe que se fiquem por ali, parando com o projeto. Mas prevalece a vontade em cumpri-lo até ao fim. Nomeadamente com uma adaptação de «Rei Lear» por ele contracenada com Ronee Blakely, devidamente adaptada para se ajustar à realidade ali representada.

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