domingo, agosto 12, 2018

(DL) «Olhos de Água» de Conceição Evaristo (I)


Há poucas semanas chegaram-me à mão diversos livros de Conceição Evaristo, uma das escritoras mais relevantes da atual Literatura Brasileira, como se comprova na recente candidatura para aceder à Academia Brasileira de Letras, que faria todo o sentido, não só por ser mulher e afro-brasileira, mas sobretudo pela abordagem da difícil existência da população das favelas, cuja voz faz ouvir em romances, poemas e contos.
Datado de 2014, «Olhos de Água» constituiu elucidativa introdução ao seu universo narrativo, credibilizado por ela própria ter nascido num ambiente desfavorecido de Belo Horizonte e, muito cedo, haver sobrevivido à custa do ofício de empregada doméstica, só vindo a formar-se academicamente já em adulta após árduos estudos em horário pós-laboral. A origem social privilegiou-lhe a obsessão pela discriminação racial, de género e de classe. Sem sentimentalismos os textos abordam a latente violência em quem lhe tenta resistir e, quiçá, encontrar oportunidades para momentos de celebração da vida.
No conto, que dá título a esta coletânea, a narradora lembra a noite em que acordara repentinamente com a dúvida quanto a qual seria a cor dos olhos da progenitora. Ela, que fora a mais velha das sete filhas, tinha presente como a mãe brincava com elas nos dias de míngua de alimentos, quando tal cumplicidade visava distraí-las da fome. Decidida a esclarecer a questão, que lhe dera tão inesperado sobressalto, volta à terra natal para quem a reencontra com um intenso choro de felicidade.
Esclarecida a dúvida, importa-lhe doravante conhecer qual a cor dos olhos da filha e também os dela própria. Não é difícil ver neles, mais do que a cor, a natureza da identidade de quem por eles comunica.
«Ana Davenga» é história típica do morro. Há um chefe de bandidos, que vive com Ana, cuja beleza causa indisfarçável efeito em todos quantos conhecem. Por aceder a tão encantatório ser, ele chora na hora do clímax de prazer, o que leva a companheira a reconhecer nele algo da criança, que fora. Mas, na noite em que a polícia vem prendê-lo, decide resistir e ambos acabam mortos pelas balas assassinas dos invasores.
Em «Duzu – Querença» encontramos uma mendiga, que viera ainda menina para a cidade, chegando de comboio para logo ser enfiada num bordel. Acabara por não cumprir a ambição do pai que a incumbira de trabalhar, estudar e sair do ciclo de pobreza da família. Agora, muitos anos depois, sabia ter nove filhos espalhados pelos morros da cidade, mas os dias de velhice eram, sobretudo, assombrados pelos delírios de alucinadas congeminações.
Em «Maria» conhecemos uma empregada doméstica, que tivera o infortúnio de apanhar um autocarro para melhor carregar os restos do banquete, que servira para a patroa e cujos restos lhe haviam sido dados como paga complementar do bom serviço. O contentamento interior via-se acrescentado das notas, que bastariam para a compra dos remédios para os filhos engripados.
A tragédia acontece quando o autocarro é assaltado por dois ladrões, um dos quais fora em tempos seu amante, e que a poupa da espoliação imposta aos demais passageiros. Tão-só escapam com o pecúlio do roubo e o motorista não consegue evitar que seja mortalmente linchada, porque erradamente considerada cúmplice do golpe.

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