quarta-feira, agosto 15, 2018

(DIM) O que as viagens ensinam


(«My Blueberry Nights» de Wong Kar-wai, 2008)
Trezentos dias redondos contados um a um por Jeremy. Tinham vindo postais do Tennessee, do Arizona e do Nevada com estórias, que o tinham feito sonhar, mas a presença do corpo ia sendo adiada por mais que o lugar reservado ao balcão parecesse aposta fútil, porque quase por certo frustrada.
Nem a regressada Katya tinha-o feito vacilar. As palavras implícitas traziam a esperança de se ver convidada a recolher as chaves de casa, voltando a ocupá-la como outrora, quando a havia amado. Mas redarguíra-lhe o quanto a ausência torna desconhecidos quem antes se julgavam geminados pelos afetos. Um último beijo, quase furtivo, nos lábios, e adeus bela russa, que já tens um avião à tua espera para o reencontro com a mãe, essa mulher cada vez mais parecida contigo, porque os anos passam e a genética assemelha os traços herdados no berço.
Ao regressar da  longa viagem, Elizabeth não deixara de começar por espreitar o primeiro andar partilhado com quem julgara vir a viver para sempre. O anúncio de disponível para alugar retirara-lhe as derradeiras dúvidas, se é que as tinha. Porque muito mudara nessas semanas em que tantas e tão diferentes pessoas lhe tinham habitado os dias. Como esse Arnie, inconformado com a desafeição de Sue Lynne, a mulher por quem se enamorara perdidamente tão só a conhecera com dezassete anos, ao mandá-la parar num controle de trânsito. Quando o álcool em excesso deixara de lhe aliviar a dor atirara o carro contra um poste, no mesmo sítio em que a vira pela primeira vez. Ou essa Leslie, viciada no poker, e decidida a demorar o mais possível no trajeto até Las Vegas para ir ao encontro do progenitor, a quem roubara o tão adorado Jaguar. Elizabeth, que lhe servira de motorista, confirma-lhe a chegada demasiado tardia, porque o hospital onde ele estivera internado, só lhes pode devolver os pertences ali deixados por um corpo entretanto remetido para a morada derradeira.
É uma Elizabeth diferente a que se volta a sentar no balcão do restaurante de Jeremy. Com uma fome insaciável, sobretudo da tarte de mirtilos, aparentemente sem outra cliente a apreciá-la, que não ela. Um comer até fartar ou melhor, concluído no irresistível sono com a cabeça tombada no tampo, mesmo ao lado do prato com os restos da refeição. E com uns lábios ainda por limpar. Ardil óbvio para que sejam os de Jeremy a colar-se-lhos para um final feliz. 

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