quarta-feira, agosto 22, 2018

(DL) Cinco notas sobre as práticas de viagem de António Mega Ferreira


1. No prefácio do seu livro sobre quarenta anos de viagens por Itália - um dos mais interessantes de quantos li no ano passado! - António Mega Ferreira lembra como há pelo menos cinco séculos que experiência similar estimulou muitos dos que a viveram a traduzi-la na originalidade das respetivas obras. Sá de Miranda terá sido o nosso primeiro autor renascentista. Cervantes induziria no Quixote muito do que ali vivenciara. Montaigne e Häendel fariam o mesmo, mas quem tornaria o Grand Tour uma obrigação para os espíritos mais eruditos do século XVIII em diante foi Goethe, que compreendeu como, mais do que o encontro com vestígios das mais antigas civilizações e da revolução humanista da Renascença, a experiência servia para melhor se conhecer a si mesmo. Daí por diante a viagem, mais do que a descoberta do exterior desconhecido, passou a significar a procura do eu interior.
2. Veneza destaca-se não só pela arquitetura, mas por ter feito da música aí composta um fenómeno popular, com o gosto de quem a ouvia a influenciar democraticamente a própria distribuição das notas na pauta. E também pelo facto de aí se ter assistido à rivalidade criativa e comercial de três enormes pintores: Ticiano, Tintoretto e Veronese.
3. Antes de Dante intentar a imposição de uma forma canónica de falar e escrever uma língua comum a toda a Península Itálica, imperava uma diversidade imensa de dialetos, que dificultava o entendimento entre os que ali eram vizinhos. Não é, pois, apenas pela sua notável «Divina Comédia», de que tantos italianos sabem inúmeras partes, que Dante é reconhecido como o poeta nacional do país, mas por ter sido quem melhor compreendeu o papel unificador da língua na criação da sua identidade.
4. Às tantas Mega Ferreira questiona-se, enquanto ateu, sobre o sentido de tanto o sensibilizarem as obras de cariz religioso encontradas um pouco por todo o centro e norte de Itália. E a resposta é mesmo essa: para que a arte nos toque não precisa da caução mística, que lhe esteve na origem.
5. Ao fim de quatro décadas a conhecer essa realidade, o escritor lamenta que tantas das cidades, que o haviam encantado, se tenham tornado parques de atrações para turistas nesta época em que, citando Esterhazy, eles não viajam, apenas mudam de lugar. E que escreveria hoje, quando a extrema-direita abocanhou o poder e passou a comandar os destinos de um país até então símbolo da cultura e do conhecimento?

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