terça-feira, dezembro 12, 2017

(DL) Literatura para nascidos no Estado Novo

Nos últimos anos, sobretudo desde que se reformou do jornalismo, Fernando Dacosta tem publicado diversos relatos sobre quem conheceu ao longo desse percurso profissional, facultando-nos informações complementares sobre alguns aspetos da História portuguesa na segunda metade do século passado.
«Nascido no Estado Novo» foi publicado em 2001 e está dividido em cinco partes explicadas pelo próprio autor numa das últimas páginas do livro: “A Primavera esteve presente nos acordares da República e do 25 de abril; o Verão, nas ditaduras do Estado Novo e das multinacionais neo-esclavagistas; o Estio, na afirmação do erotismo e na emergência da liberdade; o Inverno, no martírio dos mobilizados das guerras e no abandono dos excedentários; o Outono, na reinvenção da esperança e na resistência global.”
Tendo sido visita de casa de Salazar quase se fazendo adotar pela governanta, D. Maria, é natural que o autor seja bem mais complacente com o ditador de Santa Comba do que com o seu efémero sucessor: Marcelo Caetano é descrito como um homem muito preconceituoso, dado a arrebatamentos morais, que paradoxalmente, se tornaram risíveis ao sabermos que, a seu lado, no cemitério onde foi sepultado, está a campa do libidinoso Nelson Rodrigues. Se os dois pudessem dialogar adivinharíamos o padrinho do atual Presidente a não perder o corado próprio de quem se sente escandalizado com os costumes alheios.
As palavras mais admirativas vão, porém, para alguns dos melhores amigos com que privou, nomeadamente os que com ele partilhavam as animadas tertúlias de vários cafés lisboetas, onde as discussões não perdiam entusiasmo pelo facto de se saberem vigiadas pelos delatores da Pide. Natália Correia foi-lhe particularmente grata, sendo curiosa a sua antipatia por Amália, com quem partilhava, porém ,muitos traços de carácter. Ary dos Santos era outro dos seus ódiozinhos de estimação, depois de tanto se terem querido, por causa da radicalização política subsequente a 1974. Há também Mário Viegas de quem se lamenta o tão precoce desaparecimento ou a simpatia contagiante de José Saramago e de Pilar del Rio. Outra das personalidades, que lhe merece respeitosa consideração é o professor Agostinho da Silva apesar da forma ostensiva como virara costas ao positivismo racional. Mas como não reconhecer-lhe razão, quando dizia que “o difícil na vida é saber fazer perguntas. Dar respostas todos dão, até porque as nossas escolas apenas são formadoras de respostas”?
Testemunho de um tempo que se vai revelando aceleradamente distante, este e outros relatos de Dacosta na primeira pessoa constituem uma oportunidade prazenteira de não o deixarmos fugir sem dele lhe agarrarmos nostalgicamente alguns ténues rumores.

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