quinta-feira, dezembro 14, 2017

(DIM) «O Eclipse» de Michelangelo Antonioni (II)

Vittoria perde Piero de vista. O corretor reaparecerá mais tarde, mas, antes desse reencontro, o realizador apresta-se a proporcionar à protagonista outra experiência: para passar o tempo ela pendura na parede a sua mais recente aquisição, um fóssil onde está gravada a forma de um ramo, e apalpa-a e olha-a como se quisesse deixar-se absorver por ela. O barulho da operação dá à vizinha Anita a oportunidade para vir falar com ela.
“Estou cansada, humilhada, desgostada e desfasada”, confia-lhe Vittoria. “Há dias em que ter nas mãos um pano, uma agulha, um livro ou um homem, é igual ao mesmo”.
As confidências dela são interrompidas pelo telefone: ao ver a janela iluminada, uma outra solitária, chamada Marta, convida as vizinhas a virem visitá-la.
“Agora só conheço pessoas novas”, murmura Vittoria quando está a entrar no apartamento de Marta, uma espécie de museu africano explicável por ela ter nascido no Quénia. Nas paredes estão expostas armas, troféus de caça e fotografias de vastas planícies Vittoria sente-se subjugada pela sensação de liberdade, de nobreza e de grandeza associáveis a esses testemunhos de um mundo primitivo e não contaminado. Disfarçando-se de negra improvisa uma dança africana frenética ao som de um disco de música exótica. Entrega-se a esse ritual libertador com tal vitalidade, que Marta decide interromper bruscamente a sessão para surpresa das visitantes.
Deitadas numa cama, com copos de whisky a animá-las, as amigas retomam a conversa sobre África. “Talvez lá se pense menos na felicidade” - sugere Vittoria - “As coisas devem avançar um pouco só por si mesmas. Aqui, pelo contrário, tudo se complica. Até mesmo o amor.”
Quando conclui esta frase Vittoria já está com as amigas numa escada , que acede à esplanada do Pavilhão dos Desportos. Subitamente ela para: no silêncio noturno surpreendeu-a um som misterioso, mas igualmente harmonioso: é o som causado pelos fios metálicos  agitados pelo vento contra as hastes das bandeiras dispostas de um lado do local até perder de vista.
Ela vê-se encantada e pensativa por essa insólita melodia noturna. A inesperada conclusão dessa sequência, bem como da subsequente viagem de avião,  acentua a personalidade de Vittoria: capta a linguagem dos objetos inanimados, como é costume nas heroínas antonionianas.
Para afastar-se o mais possível de Riccardo, que continua a assediá-la aparecendo-lhe por baixo da janela, Vittoria viaja com Anita, cujo marido, piloto aéreo, deve entregar um avião de turismo aos seus clientes em Verona.
O espetáculo do céu encanta Vittoria. “Entremos na nuvem” pede, excitada, ao piloto, quando fica a saber que elas são feitas de gotas de água e de flocos de neve. Mais do que a viagem o realizador propõe-nos dar a conhecer a sua conclusão mágica: a atmosfera serena e transparente, que reina no pequeno aeroporto (os jatos a desfilarem silenciosamente no céu, dois pilotos imóveis como estatuas em frente a uma mesa de bar sob um cómico guarda-sol). Antonioni entrega-se ao prazer de demorar na representação desses momentos de esquecimento e de magia do tempo suspenso, que propiciam a Vittoria a sensação de bem estar, que ela desejaria conservar para sempre.
Nesta altura já sabemos quase tudo sobre ela: mais adulta do que a Cláudia de «A Aventura», menos problemática do que Valentina («A Noite»), mas a exemplo delas, depressa desiludida com os sentimentos.
Vittoria é simples, sadia, natural e disponível. Sempre disposta a aproveitar a poesia, o sabor e o que existe, encara as ocasiões proporcionadas pela realidade sem preocupações nem antecipações ou planeamentos.
Viver um dia de cada vez, ver o mundo por outras perspetivas e até mesmo tornar-se num olhar - eis o que Vittoria quer. O passeio noturno de Lidia em «A Noite», destinada a encontrar uma verdade comprometida pelos cocktails literários, torna-se para Vittoria um estilo de vida e o tema principal da história. Em «O Eclipse», as abordagens de Antonioni sobre as mulheres, depositárias de uma verdade em oposição interna com a civilização contemporânea, tornam-se ainda mais claros e perentórios.
À engrenagem que esmaga os homens obcecados pelo dinheiro e pelo prestígio, pela acumulação e pelo consumo, contrapõe o ludismo. Numa situação social e cultural que as não satisfaz as mulheres dos filmes de Antonioni tentam agir de acordo com o que pensam, independentemente dos programas e esquemas a que as pretendem constranger. Quando volta a procurar a mãe na Bolsa encontra-a no auge da excitação e da desilusão, porque rebentara uma bolha e todos tentam libertar-se do desvalorizado papel. A câmara insiste no contraste entre o pânico dos clientes e o nervosismo dos agentes (todos se interpelam, buscam-se ou consultam-se febrilmente através de gestos) e a indiferença olímpica dos assalariados. A mãe de Vittoria senta-se num banco com o rosto desfigurado. “ Perdeu uma dezena de milhões”, anuncia Piero a Vittoria, “ mas se se pensarem nas centenas de milhões que se perderam esta manhã em toda a Itália…”

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