sexta-feira, dezembro 29, 2017

(DIM) A brevidade do que de mágico se vive (a propósito de uma cena de «Roma» de Fellini)

Um grupo de visitantes aventura-se pelos longos túneis, que uma gigantesca broca vai abrindo no subsolo romano. O guia queixa-se da contingência maior de fazer esse tipo de trabalhos na cidade: escava-se aqui ou acolá e logo surgem achados arqueológicos, que fazem parar os trabalhos. Por baixo dos pés acumulam-se estratos sucessivos de vestígios deixados pelas gerações que nos precederam. Somos herdeiros de um espaço, só fugidiamente nosso, porque o colhemos dos que nos antecederam e logo legaremos aos que nos sucederão.
A confirmar o quanto tudo é instantâneo, impossível de agarrar e conservar, logo o grupo estaca mais adiante: a perfuradora deu com outra parede oca, capaz de abrigar atrás de si novo tesouro. E assim é: franqueia-se uma abertura e alguns dos visitantes e operários atravessam-na para serem confrontados com os olhares intensos de quem os interpela desse passado remoto em que haviam ficado retidos na forma de frescos coloridos.
Para a única mulher do grupo o encantamento é imediato: poderia haver algo mais excitante do que encontrar-se cara a cara com tão assombrosas imagens de há dois mil anos, tão brilhantes como o eram na época em que foram pintadas? Excitada, apela à atenção do companheiro, quiçá esposo, para que partilhe aquele momento mágico. Que logo sucumbe numa súbita dor de alma: a entrada de ar numa câmara, até então estanque, opera reação nas tintas do passado e, em breves instantes, elas começam a desvanecer-se.
Apavorada, pede ajuda a quem não está capaz de lha dar: iniciado o processo de degradação acelerada nada o travará. E aquele breve instante em que o passado e o presente se encontram vai definhar, conhecer um fim. Ficarão as galerias e as estátuas, já que as pedras resistem melhor às agressões do poluído ar do nosso tempo, mas esses breves olhares do passado, que pareciam perguntar porque tardaram tanto? Quem sois vós?, desaparecem sem dar tempo de lhes dar resposta.
Ao regressarem à superfície podemos imaginar o que terão pensado quem havia experimentado tal experiência. Se conheciam a canção do Léo Ferré terão lembrado que avec le temps, tout s’en va. Bem intentamos agarrarmo-nos a bens, a ocasiões felizes, que elas sempre se revelarão efémeras e nos confrontam com o infortúnio de sermos mortais, de estarmos condenados a envelhecer e sentir nos ossos o contraponto para o privilégio de vivermos.
Se tiverem optado por racionalizar a adversidade, os visitantes do substrato romano sentem imprescindível a necessidade de agarrarem as fascinações fazendo-as perdurar o mais possível. Mesmo não conseguindo deter a cadência evolutiva da ampulheta, alimentarão a memória do que viram, do que sentiram.
No fundo é a receita que Ricky Blane dá a Ilse Lund quando dela se despede no aeroporto de Casablanca: We'll Always Have Paris! 

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