quinta-feira, dezembro 28, 2017

(AV) Teria Kandinsky sido quem foi se não tivesse nascido em Moscovo?

Nunca vira a coisa dessa forma, mas devo reconhecer que um programa do canal ARTE convenceu-me desta ilação: nunca a obra de Wassily Kandinsky teria evoluído de forma a dar-lhe o mérito de ser reconhecido como o pai do abstracionismo se não tivesse nascido em Moscovo na segunda metade do século XIX.
A cidade tinha uma arquitetura, quer nas cores, quer nas formas, que ele viria a refletir nas suas composições, sobretudo quando, a partir da Revolução falhada de 1905, a realidade soviética começou a sobressair como uma dinâmica politicamente imparável até se revelar vencedora em 1917. As próprias catedrais e basílicas, quer no exterior, quer na riquíssima decoração interior, optavam pelas cores primárias, que o pintor adotaria nalgumas das suas Composições mais representativas. Podemos imaginar o artista a percorrer as avenidas moscovitas e a deixar-se inebriar pelos estímulos, que a arquitetura lhe ia suscitando.
Kandinsky não vivia, porém, obcecado pelo lado formalista da arte: as pessoas interessavam-lhe e muito, tendo decorrido da sua participação no movimento revolucionário a incontornável tentação pelas expressões abstratas. Até por elas melhor expressarem a sinestesia, que o caracterizava, traduzindo nas telas o que os ouvidos escutavam na forma musical. E se esse também era um tempo em que os compositores abandonavam os cânones novecentistas para aderirem entusiasticamente às propostas vanguardistas.  Ao novo Homem Soviético deveria corresponder uma estética que, em nada se assemelhasse com a que vingara até então.
Convivendo e dialogando com alguns dos artistas, que impulsionaram o movimento construtivista, Kandinsky sentiu exaltar-se-lhe a criatividade no meio do turbilhão político, que agitava toda a vasta extensão ocupada progressivamente pelo poder bolchevique. Quem viveu essa época e dela deixou testemunho, descreveu-a como uma daquelas que perdurariam para sempre as emoções inerentes à sensação de tudo estar a mudar aceleradamente.
Infelizmente seria sol de pouca dura: tão só confirmado como sucessor de Lenine, Estaline cuidaria de impor uma arte realista, condenando à clandestinidade as expressões artísticas que não servissem os intentos propagandísticos do novo regime. O discurso coletivista não se revelava compatível com o individualismo criativo de quem ousava tudo contestar.
A exemplo de outros compagnons de route de uma Revolução, que já não correspondia aos seus ideais, Kandinsky exilou-se na Alemanha. Onde, na década  seguinte, os seus quadros seriam igualmente excomungados por corresponderem ao que os nazis designavam por «arte degenerada».

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