quarta-feira, dezembro 13, 2017

(DIM) «O Eclipse» de Michelangelo Antonioni (I)

A estória do filme resume-se em poucas linhas: depois de ter rompido com o amante, Vittoria vai à Bolsa encontrar-se com a mãe. É aí que conhece um belo corretor por quem logo se enamora. Mas ele resiste-lhe, parece levar a profissão mais a sério do que aquela relação para que ela o pressiona. Até que se deixa convencer. É nessa altura que Vittoria hesita quanto à vontade em render-se a essa nova ligação.
Michelangelo Antonioni escreveu num texto que um filme é sempre suscitado por um elemento externo, algo que despoleta uma narrativa. Pode-se sentir uma atmosfera e logo ela se vê transformada no cenário de fundo.
No caso desta sua nona longa-metragem, cuja rodagem iniciou em julho de 1961, esse estímulo inicial acontecera em fevereiro, quando o realizador fora a Florença para captar as imagens de um eclipse total do sol. “De repente tudo parou. Um silêncio diferente de todos os outros a que nos acostumáramos. Uma luz terrestre diferente de todas as até então conhecidas. Depois, a obscuridade, a imobilidade perfeita. (…) O único pensamento que me aflorou durante o eclipse foi que os sentimentos também talvez pudessem parar assim.
Um terço do filme passa-se no edifício da Bolsa. O que terá passado pela cabeça do realizador para escolher um cenário tão peculiar? “Aconteceu-me conhecer ambientes onde algumas mulheres jogavam na Bolsa e acabei por lhes achar algum interesse. Determinado a aprofundar o assunto, pedi um passe e frequentei a Bolsa durante uns vinte dias. Foi quanto bastou para captar-lhe o lado excecional numa perspetiva visual.”
Antonioni pediu a Alain Delon, que interpretaria o papel do jovem corretor, a fazer a mesma experiência na fase de pré-produção até lhe indicando um profissional em particular, um certo Paolo Vassallo que, singularmente, viria depois a ficar famoso pelo envolvimento num caso relacionado com drogas. Na época Vassallo trabalhava para o pai na Bolsa e Delon foi observá-lo, como se movimentava, o que fazia e ia tomando notas sobre todas essas suas constatações. O ator diria depois que tinha sido como se tivesse voltado à escola.
Para as cenas rodadas na Bolsa durante o seu fecho estival, Antonioni recorreu a quem ali realmente costumava trabalhar, desde agentes a banqueiros, de forma a que se comportassem com a desejada naturalidade naquele contexto. É esse lado quase documental, que confere maior veracidade ao filme.
O filme anterior de Antonioni, «A Noite» concluía-se ao nascer do dia com uma dolorosa separação afetiva. «Eclipse» começa por uma separação ao inicio da manhã: Riccardo, um intelectual com cerca de quarenta anos, e Vittoria, nos seus vinte cinco, estiveram a discutir durante a madrugada. Ela circula pelo apartamento, mudando um objeto de sítio, abre um cortinado (deixando ver a forma espectral do aqueduto mussoliniano em forma de cogumelo!), enquanto Riccardo está sentado a olhar para nenhures. Quando Vittoria anuncia a decisão de se ir embora, ele finge não a compreender. O rosto está-lhe tenso, marcado pela fadiga.
Horrorizada a rapariga ouve-o dizer que só a queria fazer feliz e aproximar-se para a abraçar. Mas ela reage: “Quando nos conhecemos eu tinha vinte anos e era feliz!”.
Ele insiste: “Diz-me uma última coisa. Já não me amas ou não queres casar?
- Não sei!
- Desde quando é que não me amas?
- Eu queria…
- Fazer-me feliz, já mo disseste. Mas para continuar eu também deveria sentir-me feliz!”
A crónica de uma separação anunciada conclui-se sem mais delongas. A jovem quis pôr um termo à relação. Que o intelectual não saiba falar ao íntimo da companheira para a conseguir reter junto de si diz muito sobre as razões para tal separação. A tranquilidade aparente de Riccardo esconde uma secura e uma autossuficiência irritantes. Ainda procura acompanhar Vittoria rua fora mas, na verdade, apenas procura o pretexto para conseguir ser ele a tomar a iniciativa de quebrar definitivamente as amarras entre ambos.
Esta sequência inicial - que Tommaso Chiaretti considerou construída como se fosse um triste adagio! - analisa com subtileza a perturbação da protagonista que, tendo decidido retomar a liberdade, sente-se prisioneira nesse apartamento de súbito estranho.
Numa sucessão insolitamente rápida de planos o rosto de Vittoeia parece agrilhoado numa miscelânea de linhas e formas conferidas pelos objetos decorativos, pelos cortinados, pelo abajur, que testemunham a rutura a consumar-se. Desde a primeira cena, que os objetos assumem um papel determinante. No final substituir-se-ão aos seres humanos.
Procurando consolo junto de quem possa compensá-la Vittoria irá procurar a mãe onde sabe ser fácil encontra-la - na Bolsa. Viúva, essa mulher de origens modestas, tem um enorme pavor pela miséria. Notemos que, a tal respeito, em «O Eclipse», a origem social dos personagens, bem como o peso do dinheiro na vida quotidiana e sentimental, são definidos com maior precisão do que nos filmes anteriores do cineasta, o que contribui para o reforço do realismo do filme.
Quando Vittoria entra nesse “templo da negociação e da degradação dos valores”, um relógio indica uma hora e uma data precisas. As negociações geram uma permanente azáfama, os clientes acompanham atentamente as cotações no enorme quadro onde elas são afixadas. Há rostos tensos, bocas a gritarem ordens, braços a agitarem-se acima das cabeças  (“não compreendo como conseguem compreender-se e fazerem operações com sinais tão rápidos” dizia Antonioni), mãos a anotarem números com grande nervosismo em minúsculos blocos de notas, gente que se movimenta em todas as direções no meio de uma enorme confusão…
O ex-documentarista de «Gente do Pó» convida o espectador a entrar nessa selva sem recorrer a trucagens expressionistas, limitando-se a registar a realidade pura e dura. O achado está em transitar sem quase o notarmos de um mundo vago e impreciso para um mecanismo oculto capaz de transformar os homens em sombras.
Na Bolsa jogam-se destinos individuais sem que se conheçam as razões dos que os condicionam Quando Vittoria consegue aproximar-se finalmente da mãe vê-a tão obcecada por aquele fluxo de milhões, que nem sequer lhe presta atenção. É inevitável que a mãe não a entenda, porque é outro o foco das suas obsessões. A única pessoa capaz de com ela dialogar é Piero, um dinâmico corretor, que lhe presta apoio  e a quem ladeia enquanto prestam a homenagem de um minuto de silencia a um colega vitimado por um enfarte. O pilar que os separa não está ali por acaso, nem por meras razões de composição visual: tem um valor simbólico, o de haver um obstáculo quase intransponível a separa-los, a Bolsa.
Nesse memorável minuto, Antonioni consegue criar o mais perturbador dos suspenses metafísicos com uma evocação sarcástica do nada, da imobilidade, precisamente no sítio onde impera o caos. Esse vazio que vem impor-se ao turbilhão é, de facto, a presença da morte...

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