sexta-feira, abril 03, 2020

(NM) A propósito de algumas ideias feitas


1. Nesta altura em que milhões de pessoas anseiam pela notícia da descoberta e extensa aplicação da vacina contra o covid-19 aparece-me, quase como singular paradoxo, um documentário sobre os movimentos anti vacinação, particularmente nos que estão mobilizados nos EUA ou no Reino Unido. E é um verdadeiro caso de estudo sobre como alguns escroques convenceram milhares de pessoas dos malefícios do mercúrio ou do alumínio, supostamente relevantes no fabrico dessas vacinas, ou como elas suscitaram autismo, epilepsia e danos cerebrais nas crianças a elas sujeitas. Negando os dados científicos e tomando como «bête noire» a indústria farmacêutica, que estaria a ganhar fortunas com esse negócio, os ativistas antivacinação viram-se cooptados por líderes populistas, que na sua causa encontraram terreno fértil para garantir absurda atenção.

Nesse aspeto não se estranha que, em Portugal, um dos principais dirigentes do Chega seja um ativo militante dessa causa criminosa. Mas fica sem resposta a questão que a atual conjuntura suscita: existisse já disponível uma vacina contra o vírus causador da atual pandemia e quantos desses paladinos da antivacinação a ela recorreriam?
2. As ideias feitas sobre algo também estiveram na origem da completa erradicação do lobo no parque de Yellowstone. Com consequências inesperadas para quem vira nessa opção um claro benefício: sem os seus predadores os cervídeos aumentaram significativamente em número reduzindo abruptamente os pastos existentes até enfrentarem a sua escassez. E as aves, que nidificavam em território tão exuberante deixaram de ter onde fixar os ninhos. Resultado: sessenta anos depois de declarada a sua extinção no parque os lobos voltaram a ser nele introduzidos, notando-se progressivamente a recuperação do antigo equilíbrio, que o seu desaparecimento pusera em causa.
3. Essas tais ideias feitas não deixam de, amiúde, serem postas em causa, traduzindo-se em inusitada expressão. Por exemplo quanto ao Centro Georges Pompidou, uma das mais estimulantes instituições culturais de Paris por possibilitar o contacto com singulares expressões artísticas da nossa contemporaneidade. Mas quem imaginaria que a ideia de se tratar de um projeto saído da cabeça do político conservador, que ficou crismado  na sua identidade e conhecido por ter reprimido sem contemplações as manifestações do Maio de 68? Quem diria que ele defenderia que, contra a arte académica, era necessária uma outra que interrogasse e surpreendesse?  E, ainda na mesma linha, quantas vezes terão mordido a língua os intelectuais que se insurgiram contra o carácter mastodôntico da ideia, sendo obrigados a reconhecer-lhe o sucesso?
4. E o que dizer de outras súbitas viragens no que se pensa, quando elas vão no sentido contrário do que mandaria a lucidez assumida durante décadas de vida? Vem isso a propósito da conversão ao espiritualismo de Arthur Conan Doyle, que passou anos a exercitar a racionalidade através dos exercícios criativos protagonizados por Sherlock Holmes e se rendeu à negação das evidências científicas depois de testemunhar os teatros da guerra das trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial, onde lhe morreu o filho mais velho. O velho escritor operou tão radical mudança nos seus propósitos públicos, que chegou a defender uma lunática, que afiançava ver fadas a voarem à sua volta. Convenhamos que, no seu caso em concreto, melhor valera que ficasse por aquelas que tinham sido as suas ideias feitas.

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