terça-feira, abril 14, 2020

(DIM) «Funeral de Estado» de Sergei Loznitsa (2019)


As minhas primeiras visitas à União Soviética iniciaram-se em 1975, quando navegava em navios petroleiros, que iam abastecerem-se a portos no Báltico (Ventspils na Letónia) e no Mar Negro (na ucraniana Odessa e nas russas Tuapse e Novossirsk). Mais tarde, quando andava em paquetes ainda conheci Leninegrado, que ainda não havia mudado para a atual designação. Sobretudo nas primeiras daquelas cidades, singularmente já hoje dissociadas da tutela de Moscovo, encontrei quem elogiasse Lenine e Estaline como grandes dirigentes comparativamente com Brejnev, que merecia quase atávico desprezo dos meus circunstanciais interlocutores.
Foi pois sem surpresa, que vi neste filme as enormes multidões que homenagearam Estaline, quando se organizaram as cerimónias fúnebres subsequentes à sua morte em 1953.
Optando por servir as imagens sem o contraponto de uma voz off, mas acompanhando-as de uma banda sonora irrepreensível, o documentário de Sergei Lonitsa permite leituras contraditórias consoante a perspetiva ideológica de quem o vê: onde uns confirmam o efetivo apreço que o último grande dirigente soviético mereceu de parte substancial da população, outros não deixarão de olhar para considera-las como evidência do culto de personalidade, que Kruschev denunciaria em 1956 num Congresso em que desdiria tudo quanto enunciara no discurso fúnebre de que fora incumbido três anos antes.
A exemplo de outros dos seus filmes, quer ficcionais, quer documentários, o realizador ucraniano consegue dar a State Funeral um lado poético, contemplativo e nostálgico, mas ao mesmo tempo irónico, se não mesmo mordaz.
Recorrendo aos arquivos soviéticos, Loznitsa utilizou imagens, que haviam ficado inéditas, porque tinham sido muitos os metros de rolo consumidos pelos doze operadores de câmara destinados a colher tudo quanto se passara na cerimónia, e montando-as de tal forma que se reconhece facilmente o seu estilo inconfundível.
Deixando em aberto as múltiplas interpretações extraíveis de tal projeto, Loznitsa recoloca a pertinência da questão de se mistificarem ou diabolizarem os acontecimentos históricos em função dos interesses muito particulares dos que os fazem reescrever à medida dos seus interesses enquanto efémeros detentores do poder. O que nos leva a ponderar se, acaso pudesse testemunhar a atual realidade russa, o próprio Estaline se reconheceria na abusiva apropriação do seu legado por um Putin, que imitando-lhe alguns aspetos de exercício do poder, não lhe secunda em nada o conteúdo...

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