sexta-feira, abril 17, 2020

(NM) O reverso do sonho americano


Fui pela primeira vez aos Estados Unidos em 1977. Tinha vinte e um anos e embarquei num navio da Soponata, o Inago, fretado para carregar hidrocarbonetos na Líbia de Kadhafi destinados a Linden, um porto de New Jersey não muito longe de Nova Iorque.
Muito recordo dessa viagem, a começar pela despedida no Cais do Sodré para o que projetavam ser duas semanas de ausência de casa e acabaram por ser seis meses e meio, ou para o violento temporal padecido no Atlântico Norte, quando nos vimos a contas com a periferia de um furacão.
Noutras ocasiões retomarei o que tais momentos representaram na altura e como ainda persistem vivos na memória. Hoje outro estímulo me convoca na sequência de dois documentários sobre o ilusório «sonho americano». Num revelava-se como um bando de criminosos constituído por juízes, funcionários hospitalares e da administração pública somados a uns quantos assistentes sociais por conta própria, congeminaram para apossarem-se das poupanças de centenas de idosos, enleando as respetivas famílias num processo kafkiano quase impossível de resolver, porque o conluio de tal mafia chegava ao próprio Promotor Público do Estado do Nevada.
Acontecia isto: um idoso a viver sozinho caía na rua e era levado para o hospital descobrindo-se aí ser possuidor de meios de fortuna consideráveis. Sem contactarem os familiares que, em muitos casos, até os visitavam diariamente, conseguiam de um juiz corrupto a indigitação de um tutor oficial para dele cuidar, negando qualquer contacto com quem quer que fosse. Todas as contas bancárias passavam para tal tutor, que enfiava a pobre vítima num hospital psiquiátrico sob a alegação de estar demente, mantendo-o aí permanentemente sedado.
Por muito que as famílias ou os respetivos advogados tentassem romper esse cerco e infletir a decisão judicial, encontravam obstáculos inultrapassáveis, que as levavam ao desespero.
A avidez pelo dinheiro, que tanto caracteriza a sociedade americana, também estava noutra reportagem sobre os dois aviões Boeing 737 MAX que caíram na Indonésia e na Etiópia num curto intervalo de cinco meses devido a um software inserido nesse novo modelo e capaz de se sobrepor aos comandos dos pilotos quando pretendiam levar os aparelhos para as altitudes de cruzeiro, alguns minutos depois de levantarem voo dos aeroportos.
Embora fosse evidente a responsabilidade do fabricante americano na aplicação de um dispositivo problemático para corrigir outro erro de conceção - compensarem o facto de terem os motores numa posição mais avançada, dificultando-lhe o impulso para se elevarem -, a Administração da Boeing sempre tentou culpar os pilotos ou alegar outros fatores para explicar a causa dos acidentes. Tanto mais que a gestão do seu CEO traduzia-se numa estratégia muito simples: reduzir os custos de fabrico, cortando nas áreas de engenharia, e promover o aumento do valor das ações diretamente relacionados com os bónus de muitos milhões embolsados por tais administradores.
Ambos os exemplos são lapidares sobre o verdadeiro rosto do tal «sonho americano», que apenas premeia, e muito!, um pequeno punhado de privilegiados e traduz-se em atrozes pesadelos para uma grande maioria de desfavorecidos.
Voltemos, então, ao início e a essa viagem para Linden há quarenta e três anos. Nela embarcara em Lisboa um jovem da minha idade, sem grandes qualificações, ocupando a função de Chegador, que era quem, na Casa das Máquinas, cuidava das limpezas. Nessas semanas entre a Líbia e os Estados Unidos ele não se continha quanto ao entusiasmo pelas terras em breve abordadas. Na época o meu anti-imperialismo era mais tenaz do que hoje, porque a juventude associava-lhe razões mais emotivas do que racionais, potenciadas pela recente derrota no Vietname. Por isso ouvia essas laudas e atribuía-as às mistificações de um tonto.
Só que ele desapareceria de bordo na mesma tarde em que atracámos. Apostando na clandestinidade arriscou a procura da mirífica fortuna nos trabalhos não especializados, que gente sem escrúpulos facilmente lhe proporia.
Dias depois, numa noitada em Newark, encontrei muitos portugueses, que me deram a conhecer a dura realidade da sua labuta diária para conseguirem amealhar algum dinheiro: recordo-me nomeadamente de um que passava doze a treze horas por dia a matar bovinos num matadouro e tivera um sério rombo nos rendimentos, quando o parto de um filho o obrigara a pagar 3500 dólares de despesas hospitalares. Um outro, que trocara a Nazaré por Lisboa, porque o Sporting o convencera do bem remunerado talento para o futebol, vira-se obrigado a emigrar, quando a ilusão se desfizera, reconhecendo que se deixara atrair por uma outra não menos fictícia.
Ao regressar a bordo nessa noite mais convencido estava do iminente choque de realidade, que o trânsfuga deveria estar já a conhecer. Porque, ao contrário do que sucedia a um dos principais personagens de «Avalon», um filme realizado por Barry Levinson  em 1990, o fogo de artifício testemunhado à chegada mais não representava do que uma miragem depressa confrontada com árdua travessia.

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