quinta-feira, abril 23, 2020

(G) Nove semanas em Arles


No verão de 1888 Van Gogh pintou vários quadros com girassóis, uns com três, outros com cinco, outros com quinze, enquanto aguardava a chegada de Paul Gauguin, que se lhe juntaria para criar o Atelier du Midi. Também não faltavam cadeiras vazias, que alguns interpretam como metáforas da sua solidão.
Numa altura em que estava em voga esse tipo de associações de artistas, cúmplices nos esforços e inspirações, num determinado espaço para criarem obras de acordo com estéticas aparentadas, Van Gogh alimentara a expetativa de ter em Arles um dos mais bem sucedidos. E as nove semanas, que o amigo aí passou, sendo seu convidado na Casa Amarela, viria a tornar-se um dos mais frutuosos períodos de criação artística de ambos, porque Gauguin pintaria dezasseis quadros e Van Gogh trinta e dois. Mas, quando a rutura entre ambos se consumou, o projeto do anfitrião  extinguiu-se de imediato.
Não sabemos se Theo Van Gogh, que patrocinou a estadia de Gauguin, contratando com ele a compra de um quadro por mês, teve a intuição do que se viria a passar. Provavelmente não, porque, assim tivesse acontecido, não cumpriria o papel de facilitador do anseio de Vincent. Mas tendo Gauguin um carácter selvagem, a fama de bad boy e o gosto pelos bordéis, dificilmente se compatibilizaria com um Vincent talhado para uma austeridade monástica. E, no entanto, o reencontro entre ambos, em outubro de 1888, suscita no inquilino da Casa Amarela uma enorme expetativa: serve de cicerone ao amigo, dá-lhe um dos quartos do primeiro andar e, nos dias seguintes, insta-o a acompanhá-lo às redondezas da aldeia com os respetivos cavaletes para aproveitarem a luminosidade intensa propiciada pelo céu azul, donde o vento mistral expulsava todas as nuvens.
Nos primeiros dias Gauguin até se prostra às vontades de Vincent. Mais ainda: encontrando-o subnutrido, cozinha para ele, procurando devolver-lhe um aspeto menos degradado. Mas as diferenças entre ambos depressa suscitariam frequentes disputas: Gauguin nascera em Paris em 1849 e já vira muito mundo, porque passara a infância no Peru, antes de se fixar novamente na capital francesa onde se tornara um razoavelmente bem sucedido corretor da Bolsa. A crise de 1882 deixara-o desempregado e a alimentar-lhe a ilusão de sustentar a volumosa família com o talento de pintor. O problema residira no facto de dificilmente encontrar clientes para os seus quadros, depressa caindo na miséria.
Por seu lado Van Gogh era quatro anos mais novo - e também por isso sujeitara-se desde início ao ascendente do colocatário! - e decidira tornar-se artista a tempo inteiro depois de falhada a experiência de pastor protestante na região do Borinage.  O fascínio então nele despertado pelas estampas japonesas mais o decidira a decidir-se por tal vocação. Embora ambos fossem autodidatas procediam de acordo com a mais clássica das regras criativas: desenhavam o motivo a pintar, realçavam os contornos e preenchiam depois a superfície do quadro de acordo com essas fronteiras.
Quando chega dezembro o tempo agrava-se, a chuva lá fora impede que os dois artistas prossigam o seu labor no exterior. E esse enclausuramento torna ainda mais insuportável o relacionamento entre ambos.  Na antevéspera do Natal acontece aquele, que é um dos episódios lendários da História da Arte: o da mutilação da orelha, que quase mata Vincent e explicado pelo gesto desesperado de ver sabotado o seu desígnio. Recentemente, e embora violentamente contestado pelos «sacerdotes do seu mito», sedeados no Museu a ele dedicado em Amesterdão, há quem coloque uma hipótese singular: a de ter sido Gauguin a cortar toda a orelha (e não só o lóbulo exterior) a Vincent, com o florete de que sempre se fazia acompanhar, porque apreciava a prática da esgrima. Explicar-se-ia, assim, que depois de criar a rocambolesca história de fazer chegar o macabro pedaço de carne a uma prostituta, se tenha posto imediatamente em fuga.
O que se seguiu foi a súbita queda de Vincent nos abismos da loucura: pressionadas por trinta vizinhos do artista, que o queriam ver a milhas, as autoridades locais internaram-no num hospício em Saint-Remi, onde melhorou ao fim de algumas semanas. Quando dali saiu, já não voltou a Arles, que tanto o destratara - embora atualmente a vila lucre com a visita de muitos turistas à Fundação dedicada ao artista, que foi criada - radicando-se em Auvers-sur-Oise, no nordeste francês. Por pouco tempo, porque será ali que encontrará a morte num outro episódio eivado de polémica: a tese oficial do suicídio pode ter disfarçado um homicídio, que o pintor silenciou para não prejudicar os miúdos provavelmente envolvidos nesse incidente fatal.
Aos trinta e sete anos ele antecipou-se na morte a Théo, que desapareceria seis meses depois, vítima de sífilis. Gauguin ainda duraria mais treze anos e nunca esqueceria Vincent. Em 1901, no exílio polinésio, ainda pintaria uns girassóis, que se revelariam completamente diferentes dos que deparara em Arles.

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