quarta-feira, abril 15, 2020

(DL) No rasto de Ulisses


Semanas atrás o escritor Sylvain Tesson causou alguma polémica ao considerar o covid 19 como fator de mitigação da praga do turismo de massas, possibilitando melhores condições aos que verdadeiramente têm alma de viajantes para usufruírem os espaços normalmente conspurcados pelo chinfrim e poluição de quantos neles passam para tirarem selfies  e gabarem-se aos amigos de ali terem estado.
Embora logo o acusassem de elitista e coisas piores, compreendi perfeitamente o que defendia: bastou lembrar-me da diferença entre subir as escadas em espiral da Sagrada Família em Barcelona ouvindo o eco dos passos e cruzando-me com raros visitantes e repetir a experiência a seguir longa fila de turistas, que sonegavam qualquer sensação de magia propiciado pelo monumento.
Acontece que, nos cinco dias desta semana, o canal ARTE anda a transmitir uma série de cinco episódios sobre a viagem empreendida por Tesson no Mediterrâneo para recordar a Odisseia de Homero através de sucessivas escalas nos sítios onde Ulisses terá vivido algumas das mais assombrosas aventuras.
Naturalmente o périplo começa nas ruínas de Troia à entrada do Estreito de Dardanelos. Aí se recordam as razões da guerra empreendida pelos gregos contra os rivais para vingar a afronta de Helena, a mulher do rei Menelau de Esparta, ter fugido com Páris, filho do rei local. As razões para a investida seriam, porém, menos prosaicas, porque nessa altura os gregos viam no saque de outras terras a oportunidade para se abastecerem dos metais de que careciam, porquanto nenhuma mina era conhecida nos seus territórios. E esse episódio histórico, que serve de pretexto para o poema de Homero, coincidiu com a passagem da idade do Bronze para a do Ferro, com diversas civilizações a desaparecerem em proveito de outras, que possuíam armamento mais letal.
Mykonos é a escala seguinte aonde o veleiro «Akehnaton» leva Tesson e a equipa de filmagens. Ali teria sido o reino dos Lotófagos, que deram à tripulação de Ulisses uma planta capaz de os mergulhar em irreversível esquecimento. Num paralelo com essa altura, Tesson visita uma discoteca onde o DJ apregoa os benefícios da música techno quanto à capacidade de promover o alheamento das dificuldades quotidianas.
Salvando-se da ameaça logo Ulisses caiu noutra, porque, à beira do Vesúvio, obrigou-se a usar da maior argúcia para enganar Polifemo, o mais terrível dos Ciclopes. Junto à caldeira do vulcão um especialista italiano na obra de Homero defende a tese de Ulisses representar aquilo que os gregos eram para as populações mediterrânicas de então: difusores de uma modernidade, que se exprimia através de uma cultura capaz de as influenciar duradouramente.

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