segunda-feira, abril 13, 2020

(DL) Os cenários trucados de Jean-Pierre Andrevon


Apesar de não se tratar de autor reconhecido fora do género onde fez algum nome, a ficção científica, Jean-Pierre Andrevon é um escritor cujos textos me dão prazer quando os leio. Hoje anda pelos 82 anos e parece ter-se  afastado da publicação de novos contos, novelas ou romances, mas recentemente ainda se lhe detetava o rasto nas épocas eleitorais, quando anunciava o apoio aos candidatos de esquerda, mormente a Jean Luc Mélanchon, o atual líder de La France Insoumise.
Há também a sua ligação a Grenoble, cidade que me é grata por razões pessoais: conheci-a quando tinha a filha a estagiar no Laboratório Europeu de Biologia Molecular, ensejo ótimo para fazer o gosto ao hobby  de conduzir quilómetros a fio entre Lisboa e o sopé dos Alpes em duas idas e outros tantos regressos, e sobretudo de percorrer a cidade nas margens do Isère e do Drac. A tarde em que fomos à Bastille ou o memorável jantar num pequeno restaurante onde éramos desafiados a identificar os sabores dos vários pratos de degustação são daquelas recordações que me ficarão até ao fim dos dias.
Andrevon veio do campo, onde passara os tempos da Ocupação, para fazer o liceu em Grenoble, logo seguido do curso na Escola de Artes Decorativas. Tão só concluído tornou-se professor do ensino secundário enquanto fazia uns trabalhos complementares como jornalista ou a acompanhar equipas de filmagens. Escrevia igualmente os primeiros contos, que facilmente ganhavam lugar em diversas publicações, razão porque decidiu profissionalizar-se na escrita em 1969. Anos a fio publicou três a quatro livros por ano, seja na ficção científica, no policial ou na literatura juvenil.  Quando o fluxo começou a reduzir-se já experimentara outras opções: a de cineasta, de pintor e, até mesmo, de cantautor.
A militância ecologista ficou melhor evidenciada nos textos publicados em muitas revistas das quais o Charlie Hebdo é a mais emblemática. E há ainda a assinalar a publicação da sua autobiografia em 1993 com o esclarecedor título de Je me Souviens de Grenoble.
Um bom exemplo do seu estilo está no conto Num Copo de Água, que escreveu em 1973 e fez parte da coletânea Cenários Trucados. Numa vintena de páginas conhecemos um dia na vida de Louis Allézières desde o momento matinal em que a mãe o vem chamar para ele preparar-se para a escola até voltar a acordar depois de sucessivos saltos temporais em que se sujeita ao bullying dos colegas, é humilhado na universidade escusando-se a manifestar o interesse à rapariga por que se enamora, é odiado pelo sargento a quem está subordinado durante o serviço militar sujeitando-se aos piores serviços, passa quase anonimamente pelo gabinete de advogados que acabará por ser o seu quando se torna num burguês de meia-idade com um filho que o despreza até, já viúvo, morrer sozinho numa cama de hospital. No momento seguinte tem a mãe a insistir para que saia debaixo dos lençóis e tome o rapidamente pequeno-almoço para ir para a escola. Se o provérbio «a vida são dois dias» faz algum sentido, pode-se dizer que, com Andrevon, ele reduz-se a um só.
Na novela A queda de resíduos, datada de 1978, há a reminiscência da Segunda Guerra Mundial e dos seus campos de concentração embora num cenário distópico suscitado pela explosão de uma bomba nuclear. Os sobreviventes do mortífero clarão são arrebanhados, um a um, pelo exército, que os conduz para um espaço concentracionário onde nada lhes é dito e as ordens são para cumprir. Os homens são rapidamente separados das mulheres, que desaparecem sem deixar rasto, e os grupos vão-se desfazendo ao ritmo dos sucessivos interrogatórios ou exames médicos, que devolvem os prisioneiros para novos grupos de desconhecidos onde as efémeras empatias têm de ser reconstruídas.  No final o narrador tenta fugir, mas apanhado junto às vedações de arame farpado, é finalmente confrontado com o que Andrevon laconicamente enuncia ser «o seu destino».
No mesmo ano escreveu o conto O Jogo da Guerra em que é notório o seu antimilitarismo: acicatados pelos seus superiores diversos soldados em diferentes campos de batalha investem contra os inimigos só porque os descreveram como comunistas, pretos, maricas e outras insultuosas designações, que bastem para os resignarem à condição de carne para canhão.
Igualmente de 1978 O tempo do meteoro dá conta da queda de uma nave extraterrestre num cu-de-Judas, onde os aldeões demoram a procurar o engenho que lhes perturbara a noite anterior. Se os primeiros candidatos ao encontro de terceiro grau ainda distinguem a nave e o seu infeliz piloto, a rápida degradação do metal e corpo alienígenas com a agreste atmosfera terrestre faz com que os polícias e os jornalistas só testemunhem um estranho pó negro na clareira de um bosque afastado das habitações. Definitivamente fica identificado como um meteoro.
Regressão data de 1972 e volta a ter o tempo da Ocupação como contexto: para escaparem aos nazis, o avô de Christophe - um adolescente que vira os pais metralhados por um avião alemão, quando empreendiam a fuga para sul - vê o avó aprontar uma máquina do tempo, capaz de transportá-los aos dois, mais a avó, a criada e o cão, para o passado. Só que a primeira paragem é em plena campanha do Somme durante a Primeira Guerra Mundial, razão porque decidem recuar para outras eras, já que o engenho só possibilita saltos temporais para trás sem hipótese de retrocesso. Às tantas a máquina ganha vida própria e essas mudanças ganham acelerada e descontrolada velocidade. Quando a destroem para impedi-la de os fazer ir mais além estão no início do Jurássico e reduzidos à condição de quatro desnorteados lémures.
Estas cinco histórias evidenciam o quão imaginativo costuma ser o universo literário de Jean-Pierre Andrevon. Que há cerca de um mês dava ao jornal Le Dauphiné uma entrevista sobre a atual pandemia, constatando que ela não é muito diferente das imaginadas por inúmeros autores de ficção científica. 

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