quinta-feira, abril 16, 2020

(DL) Variações sobre formas diversas de encarar os desertos


1. Triste notícia a da morte de Luís Sepúlveda, alguém que estimávamos como se fosse um parente afável capaz de nos contar estórias fascinantes sobre o seu país andino. Coincidindo a novidade com a do desaparecimento de Rubem Fonseca justifica-se perante um e outro estabelecermos pertinente diferença: enquanto do nonagenário autor brasileiro pouco se esperaria para acrescentar ao que literariamente lhe conhecemos, com Sepúlveda ainda muito julgaríamos beneficiar do que a sua imaginação nos transmitiria. Os setenta anos, que contava, ainda nos permitiriam ter a expectativa de mais uma boa dezena, ou dezena e meia, de anos de ativa produção narrativa. Daí que faça sentido o reconhecimento de termos ficado, efetivamente, mais pobres, sem que isso coincida com aquelas fórmulas hipócritas utilizadas comummente nestas circunstâncias. Porque, neste caso em concreto, vimo-nos sonegados de uma riqueza ficcional, que teve agora infausto desenlace.
2. Um dos livros, que andamos a ler nestes dias de forçado recolhimento, é Espião na primeira pessoa, que Sam Shepard conseguiu escrever com a ajuda dos filhos, quando estava na fase terminal da terrível doença - a esclerose lateral amiotrófica -, que o levou há quase três anos.
Mediante frases muito curtas, que não chegam a prolongar-se para além de uma linha, ele põe um alter ego a recordar o próprio passado e o dos progenitores, com a paisagem agreste do Midwest sempre a servir-lhes de cenário. E há aquele homem continuamente sentado no alpendre a quem os familiares vêm, de quando em quando, ver se precisa de alguma coisa.
Além de muito bem escrito, mantendo as características, que fizeram de Shepard um dos grandes escritores norte-americanos das últimas décadas, há essa vertente emocional de conhecermos a derradeira obra de um escritor ciente de estar a viver os seus derradeiros dias.
3. Totalmente diferente é outro dos livros, que vamos desvendando nesta altura: A Noite em que o verão acabou de João Tordo. E o subtítulo - Thriller - acentua essa diferença não só relativamente ao romance testamentário de Shepard, mas também em relação ao que o autor tinha criado nas obras anteriores. Porque as mais de seiscentas páginas fazem-nos mergulhar num crime horroroso, que uma dupla de improváveis detetives amadores procura esclarecer.  Um deles, o narrador, é um estudante português, que conhecera os principais intervenientes no caso, quando eles tinham sido vizinhos da sua família durante umas férias no Algarve nos anos oitenta.
A vítima era um conhecido empresário da área da hotelaria nova-iorquina e a principal suspeita é a filha mais nova em cujas mãos se encontrara a ensanguentada faca com que fora repetidamente agredido.
Até agora - e ainda a trama vai a meio! - Tordo respeita fielmente os códigos estabelecidos para o género, mas debitando páginas com uma qualidade literária frequentemente ausente daquele tipo de romances.
4. Maravilhosamente bem escrito é Deserto dos Tártaros, o terceiro romance publicado por Dino Buzzati que, desde 1940, vem encantando sucessivas gerações de leitores.
O protagonista é o tenente Giovanni Drogo, incumbido de juntar-se aos militares do forte Bastiani, na fronteira norte, que constitui a primeira linha de defesa contra inimigos vindos do deserto. Iludido pela possibilidade de cometer atos heroicos, o protagonista olha diariamente para a paisagem árida e começa a descrer de dela provir alguma ameaça. Maior lhe parece a da desenfreada passagem do tempo, despendido na rotineira execução das mesmas tarefas, que lhe dão a noção de uma vida irremediavelmente perdida.
Quando, finalmente, acontece o ataque ele já está demasiado velho e sozinho para ousar sequer travá-lo.  E assim se passam trinta capítulos em que o interesse do leitor se aguça na capacidade de Buzzati em propor sempre as mesmas descrições, mas tornando-as diferentes pelas subtis variações, que nelas vai introduzindo. E valerá a pena tresler a narrativa de acordo com a proposta de alguns dos seus maiores cultores, que nela viram uma poderosa metáfora sobre a degenerescência da Itália fascista.

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