terça-feira, abril 07, 2020

(DIM) «Devaneios» de Caroline Deruas (2016)


Todos os meses o canal franco-alemão Arte possibilita-nos a visão de um filme recente de produção europeia, naquilo que designa como Festival Arte-Kino. Basta para tal clicar no endereço https://www.artekinofestival.com/film/lindomptee/auto-play, fazer o registo de acesso gratuito e assiste-se ao título disponível por trinta dias legendado na língua que for mais confortável para quem a ele aceda. Incluindo, obviamente, o português sem sotaque brasileiro.
Durante este mês de abril podemos assistir a Devaneios, primeira longa-metragem de Caroline Deruas, anteriormente conhecida como argumentista dos mais recentes filmes de Philippe Garrel. Ela situou toda a ação do filme no enclave que o Estado francês possui em Roma e destinado a servir de espaço de residência artística aos que a ele se candidatem e apresentem um projeto selecionável pelo júri. Essa Villa Médicis alberga a Academia de França em Roma desde 1803, quando Napoleão Bonaparte determinou a transferência para tal palacete da instituição fundada em 1666 por Luís XIV para servir de local de acolhimento de artistas franceses momentaneamente instalados na capital italiana.
A própria Caroline Deruas foi uma das pensionistas da instituição, passando ali o ano de 2011 a trabalhar sobre a tumultuosa relação da escritora Elsa Morante com o marido, Alberto Moravia. Razão porque conhece bem o edifício e os vastos jardins por onde cirandam os seus personagens, que acabam por centralizar-se em três protagonistas. Camille e o marido Marc são escritores, ela ainda pouco conhecida, ele já muito conceituado e apenas presente como seu acompanhante. E Axèle, uma fotógrafa misteriosa, de farta cabeleira ruiva e uma irreverência capaz de desorientar quem dela se aproxima.
As duas mulheres não podem ser mais opostas: Camille é tímida e introspetiva, Axêle ousada e exuberante. Uma escreve, o que condiz com esse virar-se para dentro de si mesma, a outra fotografa-se como se só do exterior pudesse descortinar esse eu, que desconhece.
As contradições existem igualmente entre Camille e Marc, porque este é misógino e ciumento, procurando menoriza-la para melhor a controlar, já que a sua criatividade e sobretudo o interesse dos outros nela despertam-lhe receios de vir a perdê-la.
Tendo em conta que o filme acaba, igualmente por ter por tema fundamental o ato criativo, acompanharemos Camille nos seus bloqueios perante a página em branco ou o incómodo perante tudo quanto Marc faz para a desfocalizar do seu trabalho. Ele incide sobre a personalidade de Lucienne Heuvelmans, uma escultora que, em 1911, foi a primeira mulher admitida na Villa Médicis. Essa referência às esculturas justifica a importância simbólica dada por Caroline Deruas às figuras de pedra espalhadas pelos jardins que parecem replicar os estados de alma de quem as contempla ou as abraça.
O título francês - L’Indomptée - acaba por ser o do romance escrito por Camille no ano que ali passa. Estranhamente, ao despedir-se do palacete, olha uma última vez para Axéle, que a espreita de uma das janelas de um dos andares superiores e deixa pressupor a hipótese de, tendo passado aquele ano à procura de fantasmas, a começar pelo dela própria, a fotógrafa terá ficado definitivamente presa naquele espaço concentracionário.
Devaneios acaba por ser um tipo de filme capaz de nos suscitar mais interrogações do que respostas, o que acaba por constituir sempre uma experiência estimulante por muito discutíveis que se revelem algumas opções da realizadora.

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