quarta-feira, abril 01, 2020

(DL) «O Escriba» de Célia Houdart


Há um par de anos a autora deste romance foi passar umas semanas à Índia e a experiência vivida nada teve a ver com a que planeara enfrentar à conta de tudo quanto lera, ouvira ou vira sobre a sua complexa realidade. Encontrou o iníquo ultranacionalismo, a tenebrosa violência sobre as mulheres, os odores contraditórios, as águas sujas do Ganges, mas mais do que isso uma sensação de estranheza, que procurou superar com este exercício de ficção. Invertendo a lógica do que se esperaria desse esforço, tomou por protagonista um jovem matemático indiano, proveniente de Calcutá para fazer um estágio numa universidade parisiense. Pretexto para um romance de aprendizagem entre as duas cidades e os rios que as banham.
O primeiro choque de Chandra será logo meteorológico: deixara a sua cidade sob as chuvas quentes das monções e, ao sair do avião, sente o frio invernoso daquela onde iria permanecer alguns meses. Mas também depara com a realidade dos emigrantes, a forma como são acolhidos e que lhe despertam a, até então, indefinida consciência política.
A razão do título está na estátua, que Célia Houdart descobriu, ainda adolescente, na sala 22 do Louvre: a do escriba sentado a mostrar a sua imponência. Contabilista e administrador dos faraós, também lia os textos sagrados e procurava sinais do futuro na observação do céu. Por isso tinha lugar de honra reservado ao lado do patrono, quando era sepultado numa das pirâmides ou mastabas.
Chandra, enquanto investigador científico, é herdeiro dessa tradição, porque não podemos esquecer que, na evolução humana, a invenção dos números precedeu a das letras.
Num romance de fácil leitura, porque composto de capítulos de poucas páginas, a autora assume algumas influências, que podemos desafiar-nos a encontrar estampadas no fluxo da intriga: o ciclo indiano de Marguerite Duras (nomeadamente as histórias em torno da personagem Anne-Marie Stretter) e os filmes de Satyajit Ray.
Chandra irá, pouco a pouco, descobrir que a ciência dos números não será suficiente para lidar com os desafios que o esperam e o fazem sentir-se desadaptado num contexto difícil de apreender como seu.

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