sexta-feira, abril 24, 2020

(I) Um confinado por vontade própria


Se houve alguém que suportaria sem qualquer dificuldade o presente confinamento, ele ter-se-á chamado Emmanuel Kant e viveu entre 1724 e 1804, nunca tendo saído uma única vez da sua cidade natal de Königsberg.
Hipocondríaco, neurótico, inveterado solteirão, esforçou-se por eliminar a mínima possibilidade de imprevisto nos seus dias: por isso condicionava-os ao respeito dos ponteiros do relógio sendo sempre às mesmas horas que saltava da cama, tomava as refeições, fazia o passeio diário e se deitava. O rigor desse horário era tal que os vizinhos abdicavam de olhar para o relógio do campanário, porque bastava conferirem o momento de Kant sair de casa e a ela voltar para saberem a quantas andavam.
Duas únicas vezes ele terá alterado essa rotina: a primeira em 1762, quando foi à procura do «Contrato Social» de Rousseau. A segunda em 1789, quando quis informar-se sobre a tomada da Bastilha.
Há quem avente o seu contributo para o cinto de ligas feminino, porque, a fim de não se deixar distrair no trabalho por meias, que deslizassem pernas abaixo, inventou a forma delas continuarem no sítio com a ajuda de uns elásticos.
Nas ideias é que ele teria de render-se à inflexão do que, durante anos, defendera. Racionalista por natureza, acreditava nos méritos de tudo submeter ao escrutínio das verdades científicas. Até ao dia em que deparou com o ceticismo de David Hume, que punha em causa o carácter absoluto das certezas por alguns proclamadas. E, se inicialmente, preparou todo o arsenal de argumentos para contrariar o que defendia o escocês, acabou por concluir o quanto o dogmatismo punha em causa o primado da razão, dada a forte probabilidade de a dissociar da realidade. Daí ter chegado á conclusão que para salvar a razão teria de a sujeitar à metódica crítica...

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