quinta-feira, março 28, 2019

(P) «A Boda» no CCB ou a oportunidade de ver uma outra Cornucópia


Incorrendo no risco de causar escândalo junto de muitos amigos, que prezam Luís Miguel Cintra como encenador e ator, encarei sem pinga de emoção a notícia do fecho da Cornucópia. A tentativa de Marcelo Rebelo de Sousa para convencê-lo a desistir da almejada reforma, soou a empáfia característica do poltrão, que suportamos em Belém. Que em nada resultaria estava-se bem de ver, sobretudo, porque os anos mais recentes tinham-nos colocado perante espetáculos chatos de morrer, que poderiam satisfazer Cintra na busca mística por um Deus, que lhe deve continuar a fazer orelhas moucas, mas de nenhum significado para quem tais questões não se põem. Ateu impenitente, esconjurei o tempo e o dinheiro investido em muitos dos títulos, que me levaram então até ao Teatro do Bairro Alto.
Ainda assim foi com grande interesse, que aguardei pelo regresso ao palco de um conjunto de atores e atrizes cornucopianos por muito que, entretanto, tivesse visto muitos deles em desempenhos com outras companhias, nas salas de cinema ou nas televisões. E que regalo foi ver a forma como Ricardo Aibéo os libertou dos espartilhos impostos por Cintra. Se em todos eles reconhecia a excelência  dos talentos, vê-los numa comédia inteligente, ademais assinada por Bertolt Brecht, constituiu um enorme prazer. Que deu para perceber quão diferente, para melhor, teria sido a Cornucópia se, a páginas tantas, Cintra e Jorge Silva Melo não se tivessem zangado e só o primeiro permanecesse no seu comando. É que a soturnidade beata de um poderia ter sido compensada pelo hedonismo solar do outro, que aqui assina  a tradução da peça.
Ademais é urgente devolver Brecht aos palcos nacionais, e felizmente, além desta «Boda», também António Pires está atualmente em cena com o «Terror e Miséria do III Reich» no seu Teatro do Bairro. Faz falta um teatro de intervenção, que questione os lugares comuns de uma burguesia incapaz de compreender como o impasse das suas contradições atrasa uma evolução política e social, que rompa com o quanto falta para acedermos a uma sociedade mais justa e capaz de melhorar a qualidade de vida da maioria dos que a compõem.
Em «A Boda», uma das peças do período inicial de Brecht, evoluímos de uma aparente alegria coletiva para uma sucessão de desequilíbrios, que acabam por revelar as verdadeiras naturezas dos que participam na festa. Sofia Marques e Duarte Guimarães fazem de noivos, com os convidados a corresponderem a um conjunto de eficientes estereótipos dos que costumam animar esses acontecimentos sociais. Os valores e preconceitos vão-se beliscando à medida que as garrafas se esvaziam, dando oportunidade a grandes momentos de excelente teatro sucessivamente interpretados por cada um dos demais convidados. Relevo, sobretudo, para Rita Loureiro, incumbida de ir destruindo paulatinamente um cenário, que, desde início, estava suportado em (má) cola.
Ao sair da sala ficou o desejo de ver estes atores e encenador prosseguirem com um projeto próprio, que nos devolva a oportunidade de os vermos em novos e vibrantes desafios.

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