sexta-feira, março 15, 2019

(DL) Na Patagónia tendo Sepúlveda e Aparaín como guias


Da Patagónia só lhe conheço a costa, que vai de Puerto Madryn até à Terra do Fogo com o culminar na inesquecível estadia em Ushuaia. Percorri essas cidades costeiras, com orcas a emergirem ao largo, e leões-marinhos em ruidosos jogos de amor em terra, mas nunca me afastei o bastante das águas atlânticas para respirar os ares ventosos, que Bruce Chatwin percorrera na senda das pegadas dos dinossauros. Por essa época comprei um livro de Borges em Buenos Aires, com o obelisco quase ali ao lado, e por ele fiquei a conhecer Martin Fierro, o poema épico de Hernandez, que, em coplas estipulava os códigos de valores e de comportamentos dos gaúchos. Logo de seguida vivi o meu momento «E La Nave va» de Fellini, com o Aníbal, encarregado do grupo de operários entrados em la Plata para substituírem um veio de manivelas a um gerador, a recitar estrofes completas desses versos, sobrepondo o vozeirão aos sons de todos os equipamentos da casa das máquinas do paquete «Funchal». Dias depois, antes de chegar à cidade mais austral do planeta, o emaravilhamento dos glaciares azuis turquesa do Estreito de Magalhães.
Desde então ficou procrastinado o projeto de lá voltar para repetir esse mesmo percurso, agora pelo interior do subcontinente e, na expetativa, de devolver ao olhar os mesmos deslumbres. Enquanto as circunstâncias não favorecem tal desígnio vou-me socorrendo das propostas literárias. Por exemplo de «Os Piores Contos dos Irmãos Grimm», de Luis Sepúlveda e Mario Delgado Aparáin, que constitui o meu atual livro de cabeceira. Numa prosa a quatro mãos o escritor chileno e o comparsa uruguaio criam a epistolografia de dois estudiosos da cultura patagónica, tendo por protagonistas os dois irmãos Grimm, um o esbelto Abel, o outro o gorducho, mas criativo, Caim, que se passeiam de finca em finca, entretendo os paisanos com as suas histórias de cordel e canções, que as ilustram. Há anãs voluptuosas, capazes de suscitarem grandes paixões, acrobatas azarados, e muitos outros personagens secundários, que vão entrando e saindo de cena, quase todos com nomes que remetem para outras mitologias, sejam elas as de Bogart, Wayne ou Weissmuller. Há também um denodado carteiro, que nada nas águas austrais para recolher o correio do vapor, que por ali passa, e tem o azar de perder uma perna por distração de uma orca míope, ou um respigador de uma lixeira de Montevideo, que constitui a sua alma gémea.
O sorriso, quiçá mesmo o riso desbragado, surge aqui e acolá, apesar de se reconhecer a menoridade do romance relativamente ao que de Sepúlveda tenho conhecido. Mas, mesmo numa proposta literária menos convincente, o prazer da leitura surge inegável e permite antecipar o que pode constituir o espírito daquele lugar.

Sem comentários: