segunda-feira, maio 29, 2006

CARLOS REYGADAS: «JAPAN», UM FILME SOBRE O SUICÍDIO

Há a viagem de carro da cidade para a periferia. Aonde a crueldade é perceptível sobre os animais: um miúdo apanha um pássaro e, como não o consegue matar, pede ao protagonista para que lhe torça o pescoço. O que ele faz, sem grandes estados de alma…
Mas este homem de meia-idade, que se arrasta com a ajuda de uma bengala, é um pintor a contas com um drama íntimo: o seu desejo é o de encontrar a morte na pequena aldeola escondida no fundo de um canyon.
A câmara abandona-o muitas vezes enquanto personagem e cola-se aos seus olhos, transmitindo-nos a sua progressão por caminhos e carreiros, que reiteram a austeridade de uma paisagem, que imita a rudeza dos rostos marcados por profundas rugas.
A senhoria em cuja casa ele se hospeda é Ascen, uma velha viúva cujos gestos de aproximação - a oferta de uma taça de chá, por exemplo - são rechaçados. Mas, como se essa rejeição lhe desse má consciência, o forasteiro mostra-lhe os seus quadros e inicia-a na marijuana.
Quem constitui uma ameaça, bem diversa da generalizada simpatia com que ele se vê acolhido na aldeia, é Juan Luís, o sobrinho de Ascen que, depois de passar pela penitenciária, está agora ansioso por espoliar a tia da casa, que fora do seu avô.
As tentativas do pintor para sair da sua letargia não são bem sucedidas - não são bem sucedidas nem as tentativas de se masturbar, nem as de se matar.
A impotência torna-se uma explicação cada vez mais óbvia para esse desejo em acabar consigo mesmo - quando vê uns miúdos rirem-se de um velho cavalo incapaz de copular com uma égua, ele sente alguma identificação com o animal.
Em desespero, no dia em que o sobrinho de Ascen virá subtrair-lhe a casa, ele consegue dela a oferta do corpo para inflamar a sua arrefecida libido. Mas em vão …
A morte é inevitável, já que nada mais justificará a continuidade dos seus dias sempre iguais na incapacidade de lidar com tão indizível desespero...

segunda-feira, maio 08, 2006

«A GAIVOTA»: PARADIGMAS REVOLUTOS

Há Irina Nicolaevna Arkadina, superlativamente interpretada por Rita Loureiro.
É uma conhecida actriz de teatro, que detesta ver-se envelhecer. Por isso o filho de vinte e cinco anos coloca-lhe um sério dilema: enquanto mãe deve amá-lo, mas a sua simples presença é bem demonstrativa de como já está longe do fulgor da sua juventude. Por isso é infeliz e semeia infelicidade à sua volta, quer inferiorizando os esforços criativos de Costia, quer negando-lhe o dinheiro, que o poderia ajudar a uma melhor inserção social.
E, quando o próprio amante a deixa em benefício de uma actriz mais jovem, ela não hesita em recebê-lo de volta, porquanto vive muito mais das aparências do que das realidades afectivas.
Numa peça em que quase todos são infelizes por viverem na frustração de não alcançarem os seus objectivos, Irina poderia personificar a felicidade do sucesso. Mas não: apesar da riqueza, apesar da beleza, apesar do sucesso junto do público, ela sente escoar-se por entre os dedos tudo quanto poderia dar-lhe o contentamento de ter chegado a algum lado…
O filho é Konstantin Gavrilovich Treplev, ou simplesmente Kostia. Na interpretação esforçada de Duarte Guimarães. Vinte anos depois seriam destes Kostias, que a Revolução de Outubro emergiria. Porque eles cresceram na burguesia e não têm dinheiro. E porque, em termos artísticos, aspiram a formas novas e já não suportam todos os academismos, que fundamentavam as obras passadas.
Por isso há uma peça estranha, que só ao médico Dorn sensibilizará. E há a ânsia de uma amor profundo, que se revelará impossível. Por isso a frustração é tanta que, sem razão aparente, ele disparará sobre a gaivota, que dá título à peça. Uma vítima inocente e colateral a todo o sofrimento colectivo.
E, sem se dar conta disso, Kostia será, afinal, a verdadeira gaivota dos dramas a que assiste. Porque viver sempre também cansa e as armas são objectos, que até se mostram bastante disponíveis.
A paixão impossível de Kostia incidira em Nina Mihailovna Zarechnaia. Uma renovada oportunidade para apreciar as qualidades de Rita Durão em papéis, que exijam a explicitação de uma diáfana fragilidade.
É ela - a rapariga rejeitada pela família, que parte para Moscovo em busca do sonho impossível (o amor de Trigorin, o sucesso nos palcos) - quem reivindica a condição de gaivota.
Mas ela é tão só uma mulher infeliz nas suas opções afectivas e incapaz de se entregar ao único homem, que lhe deseja dar todos os impossíveis.
Será a sua frivolidade, que a levará a aproximar-se demasiado do sol em que se pretende translacionar e a aí perder as penas.
Num papel bem mais secundário, mas afinal tão relevante, porque ilustrativo, pelo exagero, do percurso de Nina, temos Masha, a filha do feitor, numa interpretação contida de Teresa Sobral.
Sempre vestida de negro em luto pela própria vida, ela persegue o sonho impossível de ser amada por Kostia, embora ceda ao realismo de se casar com o mestre-escola. Uma opção, que acabou por não a recompensar, porque essa relação dá-lhe uma criança, mas não a afasta dos seus óbvios desejos. E por isso bebe e cheira rapé numa procura catártica de compensações, que nunca se revelam satisfatórias.
A mãe dela, Polina Andreevna, na prodigiosa interpretação da imensa Márcia Breia, viveu a relação clandestina com o médico, que hoje a afasta sucessivamente, ora porque os seus encantos já desapareceram, ora porque ele próprio, aos cinquenta e cinco anos, já deixou de ser o bem sucedido sedutor de todas as mulheres das redondezas.
Mas, viajado, este Yevgeny Aleksievich Dorn, interpretao por Luís Lima Barreto, é o único a encarar todo aquele drama com a lucidez de quem sabe confrontar-se com forças, que o extravasam.
Na arte de Kostia ele pressente o novo, que o fascina, mas sem saber bem porquê. Talvez, porque ao fazer parte dos privilegiados, ele se sinta incapaz de entender o fulgor revolucionário, que se vislumbra à distância...
Quem representa a arte decadente de uma sociedade em crise é Boris Aleksievich Trigorin, interpretado por Ricardo Aibéo.
Ele é o típico escritor, que olha para a realidade com a caneta e o bloco de apontamentos sempre preparados para anotar possíveis hipóteses de ficção.
No resto do tempo ele queda-se à beira do lago, de cana de pesca estendida à espera de alguma perca.
A sua relação com Irina tem mais de conformismo do que de exaltação.
Ela serve-se do seu prestígio para ilustrar a sua imagem de actriz de sucesso, bela e adulada pelos homens, enquanto a ele o interessam as pessoas com quem ela o põe em contacto nas suas estadias na casa de campo.
De entre os demais personagens secundários desta história, que alguns consideraram a mais autobiográfica de quantas Tchekov escreveu, ainda se deve evocar a veterania competente de José Manuel Mendes no papel do feitor, a sobriedade de Dinis Gomes no de mestre-escola, e sobretudo, a sapiência de Luís Miguel Cintra no do tio Piotr Nicolaievich Triplev. Muito envelhecido, este antigo conselheiro do Czar perde a alma no campo, quando sempre fora urbano por natureza. Mas o dinheiro desaparece completamente na conservação daquela quinta e a irmã recusa-lhe, através de Kostia, o empréstimo necessário para recuperar a sua prestigiada posição social.
A esse título ele representa a velha aristocracia, que os bolcheviques iriam erradicar violentamente, já que se revelava incapaz de compreender as urgências da História humana. Ao contrário do velho príncipe Salinas, os Piotr Triplevs degeneravam fisicamente, depois de há muito a alma lhes ter acinzentado.
Ainda assim, e a exemplo de Dorn, há nele uma ternura pelo sobrinho, que nada tem a ver com os seus conceitos ideológicos ou estéticos. É uma mera atracção pela juventude definitivamente perdida.
Em balanço é uma peça notável nas leituras possíveis de quanto revelam os seus personagens e bem actual nesta época, que parece ser a do fim de um conjunto significativo de paradigmas.

segunda-feira, maio 01, 2006

«LISBOETAS» de SÉRGIO TRÉFAUT

Eles estão aí no meio de nós. São brancos (muito claros, porque eslavos), são negros, são amarelos. De todas as cores e de todas as latitudes. Mas lisboetas de facto, porque aqui procuram esse paraíso na Terra, que lhes escapou no lugar onde nasceram.
E temos a concretização de tudo quanto de pior encontramos na emigração e nos escusamos de olhar.
A exploração, por exemplo. Há um negro, que trabalhou doze horas de seguida para só receber 25 euros. Ou o engajador, que nem quer continuar a conversa, quando lhe acenam com a exigência de contrato de trabalho.
As condições de miséria. A pernoita em quartos minúsculos e caros, quando não mesmo em frágeis abrigos na rua. A tentação do alcoolismo, quando não se tem qualquer família e apenas se encontra socorro para a doença na carrinha, apenas dotada do suficiente para os cuidados mais básicos.
A dificuldade de comunicação. Que se procura debelar no difícil manejar do português em aulas aonde se aprende a dizer «aldrabão» ou «coçar-se. Ou quando nos Serviços de Emigração são inexistentes os tradutores, que pudessem facilitar a compreensão quanto aos (muitos) papéis a preencher como forma de se legalizarem. Ainda assim existem jornais apostados em servirem de veículo facilitador dos passos perdidos desses homens e mulheres nos caminhos da cidade.
A religião. Que é uma forma de identidade, seja ela ortodoxa, muçulmana, protestante ou qualquer outra. Aonde as pessoas se encontram e trocam experiências, sentindo-se menos sós neste sítio, que se julgou recheado de gente rica e, afinal, tão diferente do que, lá longe, se imaginara.
Mas há também o contraponto: os telefonemas para casa como forma de mitigar saudades, os bailes animados ou as idas à praia para encontrar o fascínio do oceano. No limite há quem se arrisque a ter filhos, apostando num futuro bem mais próspero do que este presente de empregos inseguros e mal pagos.
O filme do Sérgio está à medida do que dele conhecemos: sensível e fraterno para com esses desvalidos de todos os continentes a quem a pobreza empurrou para a aventura tremenda de buscar a sobrevivência entre nós.
Que os olhamos desconfiados, como se não fizessem parte integrante da sociedade, que é a nossa...

sábado, abril 29, 2006

A ILUSÃO DE UM MUNDO ESQUIZOFRÉNICO

O que mais surpreende no testemunho de Traudl Junge é a sua complexidade enquanto personalidade envolvida em acontecimentos históricos, que a transcenderam. Secretária de Hitler, ela simpatizou com esse homem simpático em quem não adivinhava o monstro depois revelado pelos acontecimentos. E só se viria a perdoar desse comprometimento emotivo com ele já muito tarde, quando a vida a estava a abandonar. Porque, durante cinquenta anos, ela rejeitara qualquer abordagem de quanto vivera no bunker de Berlim.
Ora, a propósito desse inglório epílogo do nazismo, ela tornou-se uma das sobreviventes capazes de retratarem o ambiente singular desses dignitários de um regime à beira da derrocada. Por exemplo ela brincou com os filhos do casal Goebbells antes de Martha envenenar os filhos para que estes não fossem obrigados a viver numa «Alemanha que os não mereceria». Ou seria a ela própria, que Adolf Hitler ditaria o seu testamento, antes de se suicidar com Eva Braun.
Mas a própria história pessoal de Traudl não deixa de ser curiosa: educada sem pai e com as maiores dificuldades, ela encontraria em Hitler e na aparente segurança do bunker de Berlim, essa substituição de uma carência íntima, que lhe obnubilaria uma análise racional de quanto ocorria à sua volta.
O que não a impediria de reconhecer que a sua juventude não justifica a miopia perante tão gravosos sintomas de um mal estar perceptível em pequenos episódios da corte hitleriana: ela presenciara a queda em desgraça da esposa de von Schirach por lamentar as condições em que os judeus eram embarcados em Amesterdão a caminho dos campos de concentração…
Sophie Scholl, por exemplo, surge-lhe como uma rapariga da sua geração, que optara por um percurso totalmente oposto ao do seu…
Traudl confessa que só após a Segunda Guerra Mundial, no decorrente processo de desnazificação, é que as ilusões semeadas pelo defunto regime foram desfeitas. E que viver em liberdade não apresentava os perigos outrora aludidos pelo antigo patrão.
É uma mulher octogenária reconciliada consigo própria, que se vislumbra nas imagens do documentário hoje apresentado pelo canal 2. Que deixa como alerta os riscos de nos comprometermos com algo tão atraente quanto perverso na sua essência intrínseca ...

sábado, abril 22, 2006

VINTE ANOS DEPOIS DE TCHERNOBYL

Daqui a uns dias cumprir-se-á mais um aniversário sobre o desastre de Tchernobyl. Sempre atenta a ARTE transmitiu um documentário interessante de Christoph Boekel que, na primeira pessoa, relacionou o seu próprio drama - a viuvez da sua mulher, a quem um cancro levou antes dos quarenta anos - com o de quantos perderam a vida ou estão muito doentes como consequência da radiação recebida nas semanas subsequentes a esse acidente. Uma atenção particular é por ele dada a Dima, um jovem soldado, de grande vocação artística, a quem as funções de limpeza de uma zona próxima da Central, causou a morte em 2002.
Estão em causa os erros de construção da Central, os erros dos seus operadores e a inexperiência, se não mesmo ignorância, dos responsáveis pelas operações de contingência. O resultado não tardou a manifestar-se: as mortes, em atroz sofrimento, de quantos se sacrificaram para conter as radiações através da construção do sarcófago em betão.
Numa época em que a União Soviética via falidos os seus esforços expansionistas na guerra do Afeganistão, a explosão de Tchernobyl anunciava a implosão próxima do regime fundado por Vladimir Lenine.
No documentário desta alemão, que casara com uma rapariga ucraniana, quando procurara seguir a peugada do pai, que participara na Segunda Guerra nas fileiras do exército nazi, e a contratara como tradutora, importam os rostos das pessoas: o desse pintor, cujos quadros exultavam de cores vivas antes dessa experiência, e dela viera apostado em só ilustrar os terrores da radiação através de cores cinzentas. Os dos amigos, que o tinham conhecido na escola, e dela evocam a singularidade das suas preocupações artísticas. Os dos técnicos de cinema ou do jornalista, que percorreram a zona sinistrada nos dias seguintes à explosão para tentarem compreender o como e o porquê da sua ocorrência. Ou a da mãe desse mesmo Dima, que considera uma vergonha tudo quanto aconteceu na época e nos anos subsequentes, quando os poderes políticos se eximiram de qualquer responsabilidade quanto ao sucedido.
Vinte anos depois a evocação deste acidente ganha particular relevância numa altura de requentados fervores pró-nuclearistas de quem vê em tal forma de energia a oportunidade de ganhar significativas mais-valias sem atender às consequências do que nela possa correr mal…

sexta-feira, abril 14, 2006

UM FILME SOBRE A CHINA DE HOJE

Passaram oito anos sobre os meus quase cinquenta dias em Xangai: uma experiência inesquecível pelo que me trouxe de vivido sobre uma realidade tão candente quanto o é a evolução da sociedade chinesa nesta sua transição de um comunismo puro e duro para uma terceira via, que procura melhores soluções do que a lamentável «perestroika» russa.
Independentemente da abordagem mais aprofundada de críticas do «Público» algumas páginas à frente, «O Mundo», de Jia Zhang-Ke reflecte três aspectos singulares dessa evolução:
Existe enquanto evidência mais óbvia a incapacidade de se encontrar a felicidade na realidade pequinense de hoje. Mesmo mergulhadas no sonho virtual representado por este parque de atracções, os que nele trabalham não sentem quaisquer outras aspirações para além das da mais prosaica sobrevivência.
Noutra vertente pode-se encarar o parque como um universo concentracionário, idêntico em qualquer outra latitude por muito que se parta de avião à procura de novas realidades. Não vem a russa Anna revelar a impossibilidade de se encontrar lá fora algo de diferente em relação aos vários tipos de tráfico, que a acabará por enredar?
Finalmente, e numa abordagem mais directamente política, pode-se concluir que se o comunismo não deu felicidade aos seus protagonistas, o capitalismo - com o advento do trabalho escravo - não significa nenhuma melhoria.
O filme de Jia Zhang Ke frustra quem o vê porque só identifica razões de tristeza e de infelicidade, mas não adivinha portas de saída.
Em tempos de atroz pessimismo, ele prossegue na mesma onda...

segunda-feira, março 20, 2006

AS CRIANÇAS DE RUA DE DAKAR

O filme é a preto e branco, não só por opção estética, mas porque os recursos decerto não abundavam. A urgência do que se mostra não se compadece com pruridos artísticos, tão obscena se revela uma realidade afrontosa para todos quantos têm os meios para a transformar. Papisthione, que assina a realização, perfaz o que lhe é possível: dar a ver a vida miserável das crianças de rua em Dakar. Se Karl Marx dizia, que à realidade não bastava interpretá-la, sendo necessário transformá-la, «Da Vida das Crianças no século XXI» corresponde a um libelo impressionante para quem perfilhe aquele conceito ideológico.
Logo nas primeiras imagens quem está por trás da câmara interroga uma rapariga, que se prostitui. Entregue a si mesma, ela ainda consegue emitir palavras de esperança em relação a um futuro melhor. Com a ajuda de Deus, sugere! Mas os próprios olhos traem-lhe o verbo: ela sabe que, mais do que fiar-se na Virgem, é obrigada a correr. Para sobreviver…
«Como vão as crianças?». A legenda aparece a separar sucessivos quadros, qual deles o mais incómodo para quem procurasse entretenimento nas imagens.
Na seguinte há corpos espalhados, amontoados, num casebre: o sono, provocado pelo cansaço, ou pela inspiração de colas e outros recursos alucinogéneos, constitui o paliativo para enfrentar a dura realidade da vigília. É a fuga possível às injustiças, que leva um dos miúdos, de olhos esbugalhados a emergirem do seu rosto de esfomeado a perguntar: «Mas já não há leis neste país?»
Injustiças feitas de diversas formas de violência, que lhes acentuam as marcas de cicatrizes por todo o corpo, sobrepondo-se ao encardido da porcaria ou às feridas deixadas por parasitas, que lhes sugam o sangue….
Há tanta tristeza naqueles rostos, que ainda é possível o espanto ao vê-la adensar-se, quando a chuva cai e os ensopa, forçando-os a escolherem refúgios de circunstância aonde o espaço ainda se mostra mais apertado… Ou quando um pequeno cão morre à nascença e força lágrimas, que se julgariam definitivamente esgotadas nas suas glândulas.
O cinema deve ser assim: não deixar indiferente quem o vê. Mas depois de sacudida a letargia para que nos empurra a letargia dos dias, que se pode fazer em alternativa? Acentuar a nossa consciência social? Reagir ao deparar-se-nos na rua quem é irmão gémeo destas crianças porventura já provavelmente mortas e substituídas por outras, que lhes imitam os mesmos traumas seis anos depois?
Uma coisa é certa: o hoje nunca nos pode satisfazer conquanto persista em nos demonstrar diariamente que, à falta de Deus, cabe ao Homem a transformação do inferno terrestre numa aceitável forma de purgatório...

sexta-feira, março 10, 2006

EXEMPLOS DO NOSSO CONTRADITÓRIO VIVER

A discussão sobre os «cartoons» relativos a Maomé e sobre as reacções em todo o mundo islâmico, continua na ordem do dia. Porque continua difícil o estabelecimento da fronteira entre a liberdade de expressão e a sensibilidade ferida de toda uma camada de crentes. No «Público», o José Vitor Malheiros procura situar esse ponto de eventual convergência:
Há quem tente comparar o comportamento do cartoonista que não aceita ser calado, ao do «muçulmano» que não aceita ser ofendido. A analogia está ferida, porque os comportamentos não são simétricos. Enquanto a acção do muçulmano nesta parábola pretende forçar o cartoonista e restringir os seus movimentos, a acção do cartoonista não força nem limita o muçulmano. E esse respeito da liberdade (de ambos os interlocutores neste confronto) é, nas democracias liberais, mais importante que o risco de ser ofendido. É que a única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido é aceitar a certeza de ser escravizado.

Volta a constituir um problema a questão religiosa, sobretudo pelo fanatismo de quem procura assumir uma estratégia proselitista em relação aos que não crêem nas suas convicções. De um lado está esse mundo islâmico, com um crescimento demográfico, que coloca muitos dos seus jovens sem esperança de conseguirem os empregos necessários para auferirem do direito a alguma esperança de normalidade e do outro esse Ocidente envelhecido e consumidor obsessivo de bens invejáveis em vias de se fechar em torno dos seus próprios labirintos.
Neste lado da trincheira, a questão divina está eivada de respostas cépticas, desde a radical rejeição da existência de qualquer forma de transcendência até à complacente aceitação de rituais, que se cumprem por rotina em certas ocasiões específicas da vida, como é o caso dos casamentos e dos baptizados.
Foi neste cenário, que o filósofo francês Quentin Meillassoux escreveu o seu ensaio «Après la finitude», que adopta como subtítulo «Ensaio sobre a necessidade da contingência». E essa contingência é um Deus, que ainda não existe, mas a ser inventado à força de tantas vezes invocado. Sobretudo, porque é a única possibilidade de tornar sustentável uma certa forma de imortalidade assente na ressurreição dos mortos de acordo com uma perspectiva laicizada.
Perante o caos mental inerente à revolta por tanta morte precoce de crianças de tão tenra idade ou de quem ainda tanto haveria a esperar em termos criativos, resta consolidar a ideia de uma crença messiânica derivada do desejo da sua existência.
Essa crença permite ordenar esse caos mental de quem se sente perturbado pela contínua mudança das referências circundantes. Tanto mais, que neste mundo sem Deus, existe uma aparente ordem por cima desse caos vigente. Leis contingenciais, que possam ser o sustentáculo desse devir por elas condicionado, por elas ordenado…
A tese tal qual assim se apresenta não parece sólida para um ateu empedernido, como é o meu caso. Mas, para quem tem verdadeira necessidade de acredita num sentido qualquer para explicar o que não parece ter qualquer justificação, até nem desmerece de tantas outras hipóteses metafísicas…

Sobre a morte existe também a questão da eutanásia, que divide apoiantes e opositores em nome, uma vez mais, de princípios religiosos. Para Nicola Bardola o assunto apresenta uma perspectiva pessoal: os pais, através da organização «Exit» a que ele próprio pertence, decidiram suicidar-se, quando a doença de um deles já estava demasiado avançada para suportar a dor, optando por essa via definitiva em conjunto. Num romance recente ele procura contribuir para um debate desapaixonado sobre o assunto, mas realçando a coragem dos suicidas, condenando a interpretação psiquiátrica de uma eventual irresponsabilidade de quem toma essa opção e caracterizando muitas das actuais práticas médicas como sendo passíveis de prolongar a agonia sob a aparente vontade de aumentar o tempo de vida.

Atitude de ruptura com os valores vigentes foi, também, a de Jun Xing. Hoje ela é a diva da dança moderna em Xangai, mas em 1967, quando nasceu na Manchúria, enquanto filho de um militar aí colocado, Jun Xing era um rapaz.
Muito cedo o seu desejo de dançar leva-o ao exército aonde essa vontade é correspondida pelos espectáculos artísticos de propaganda. Razão para a sua rápida ascensão até ao posto de coronel enquanto reconhecimento pela sua condição de melhor bailarino chinês.
Em Nova Iorque conhecerá as opções mais vanguardistas da dança contemporânea ganhando aí idêntico reconhecimento enquanto bailarino de excepção. Até tomar conhecimento de uma nova técnica, desenvolvida no seu país, para pessoas como ele a contas com problemas de identidade sexual. A mudança de sexo fá-lo mulher, resolvendo esse desajustamento antigo entre o que sentia e o que dizia o seu bilhete de identidade. Seria a primeira operação de mudança de sexo na República Popular da China.
Hoje, casada com um alemão e mãe de três crianças adoptivas, Jun Xing procura sacudir o conservadorismo artístico de um regime, que também procura a forma de se transformar num projecto viável no futuro…

Um pouco ao norte dessa China em mudança, Lee Chang Dong é reconhecido como um dos seus intelectuais mais estimulantes, sobretudo enquanto realizador de cinema. «Oásis», um filme posterior à sua curta passagem pelo Governo, enquanto Ministro da Cultura, apresenta um homem simples, explorado pela família e condenado injustamente por um crime, que não cometera.
Trata-se de um filme sobre as fronteiras do que separa cada um de nós dos outros, mormente dos que apresentam deficiências mentais dos que aparentemente não as têm. O protagonista tentará violar uma mulher com esse tipo de deficiência, antes de por ela se procurar fazer amar…
Está-se entre o Bem e o Mal, entre carrascos e vítimas, numa metáfora à atitude esquizofrénica dos próprios coreanos, que continuam separados pela fronteira do paralelo 38.
Perante os seus temas, sejam eles literários e/ou cinematográficos, Lee Chang Dong confessa-se visitado, amiúde, por certas imagens, como se vivesse entre dois mundos.
Ora não é esse o destino do Homem Contemporâneo? Do que atrás fica explicitado não sobram muitas dúvidas. Todos nós vivemos entre dois mundos: entre o Ocidente e o Islão, entre a exegese religiosa e o mais radical ateísmo, entre a Vida e a Morte, entre a identidade masculina e a feminina, entre a loucura e a «normalidade»…
Tantos exemplos deste nosso contraditório viver...

domingo, fevereiro 12, 2006

LUTAR PELO DIREITO DE SE DIZER O QUE SE PENSA...

Na televisão revejo esse crime irreversível, que constituiu a destruição dos Budas afegãos. Um regime inculto e intolerante reduziu a pó os vestígios de uma civilização milenar.
É inevitável a relação entre essas imagens e as dos últimos dias, com turbas em fúria a protestarem contra a liberdade de expressão dos cartoonistas dinamarqueses. Mesmo aceitando-se que na génese desses desenhos tenha estado a estratégia de confrontação da extrema-direita para com pessoas diferentes - e, então, no seu significado próprio, eles não obedeceriam a nenhuma inocente demonstração de uma ideia - as reacções políticas de alguns responsáveis europeus não me merecem acordo. Não só porque tenho bem presente o preceito voltairiano de uma supremacia da liberdade de expressão do pensamento sobre todos os demais direitos, mas sobretudo, porque, tal como Edmund Burke, acredito que a barbárie afirma-se, quando o Homem civilizado peca por inacção.
É evidente que existem riscos em fazer o jogo da direita, ajudando ao tal choque de civilizações de que fala Huntington. Mas é preocupante a evidente ascensão dessa forma de fascismo islâmico, que ainda vem sendo crismada de fundamentalismo. O que acaba de se consagrar como força política maioritária na Palestina e vem ganhando influência crescente por todos os países do Médio Oriente e da Ásia…
É claro que, sem descurar culpas dos presidentes anteriores, foi George W. Bush quem mais contribuiu para essa situação: combatendo ditaduras até então laicas, como as de Saddam Hussein ou de Najibullah criou todo o ensejo de dominação dos mollahs e ayattollahs. A tanto o conduziu a cegueira pelo domínio dos poços do petróleo, que encarou como a melhor estratégia para impor uma dominação imperialista já mais que afirmada…
Nesse sentido, nós europeus, somos como que vítimas colaterais de culpas alheias? Porque, incapazes de repetirem os atentados de Nova Iorque, os terroristas vêm atacando capitais europeias aonde a imigração proveniente dos países islâmicos nunca constituíra problema.
Quando as posições xenófobas começam a encontrar um tal eco nas opiniões públicas, que Le Pen consegue atrair um quinto do eleitorado francês e que os neofascistas italianos conseguem integrar o Governo de Roma, pode-se considerar que o Homem Civilizado tem estado demasiado apático perante a realidade, que ameaça transformar o seu quotidiano em novas formas de genocídio.
A esquerda tem de mostrar uma enorme lucidez nas posições, que vier a assumir. Não pode ficar prisioneira de dogmas, que a realidade vai desmentindo. Mas não pode conotar-se com outras posições, que a privem dos seus princípios fundamentais.
Parece lógico que a União Europeia tome posições muito firmes quando milhões de muçulmanos são arregimentados para a ameaçarem com as piores consequências da sua não cedência aos ultimatos fascizantes dos fundamentalistas.
E onde não pode haver qualquer cedência é no respeito pelo direito de qualquer dos cidadãos exprimir o que lhe vai na alma...

terça-feira, janeiro 31, 2006

ACIDENTES DE PERCURSO

Está, hoje, em causa este modelo de sociedade baseado numa filosofia ultra-liberal, que retira ao Estado quase todos os meios de intervenção, confiando na sagacidade equilibradora dos investimentos privados.
A velha crença num socialismo libertador, solidário e fraterno parece teoria há muito condenada pela História.
E, no entanto, a América Latina, de Norte a Sul, é varrida por sucessivas vitórias de candidatos de esquerda, como se os seus povos viessem a vingar-se dos efeitos terríveis das ditaduras dos anos 70.
Mas será essa orientação política bem sucedida, ou um efémero fluxo antes de ver seca a fonte que a alimentou? É uma questão, que encontrará resposta daqui a não muitos anos. Porque num processo revolucionário, como o empreendido na Venezuela pelo Presidente Chavez, só há duas soluções: vitória ou morte!
A vitória é possível, mas as dificuldades são imensas, se pensarmos em todo o ascendente do poderoso vizinho do norte. Aonde, porém, o Presidente está a contas com um fogo cerrado dos opositores, finalmente com meios de prova suficientes para denunciar as suas derivas totalitárias e os sinais de uma corrupção intensa fomentada pelos lobbistas.
Pessoalmente mantenho-me na convicção de que existem potencialidades na doutrina comunista, momentaneamente condenada pelos acontecimentos históricos mais recentes.
Se a queda do Muro de Berlim foi um indesmentível passo atrás, o fundamento em que a oposição dos seus regimes assentou - o de eleições pluripartidárias e livres - encontra agora uma surpreendente reviravolta com a vitória do Hamas na Palestina. Repetindo-se o já ocorrido há alguns anos na Argélia: para o Ocidente há eleições democráticas e eleições democráticas.
Na maioria dos casos, a sua influência precipita a vitória dos seus preferidos (e isso ainda há pouco sucedeu na Ucrânia ou na Geórgia). Mas, quando ganham aqueles com quem o Ocidente nunca desejaria contactar, a democracia acaba por revelar-se um regime com muitas limitações.
É assim, que se desmascara por si mesma a hipocrisia dos regimes ocidentais. Que semeiam ventos, de que resultarão futuras tempestades…
Uma sociedade diferente e mais justa pode ser construída. SE assente na racionalidade de uma divisão mais justa dos lucros decorrentes da actividade económica...

domingo, janeiro 29, 2006

DESFRUTAR AINDA A LENTIDÃO DO TEMPO

Jean Échenoz é um dos escritores franceses mais interessantes de entre os que regularmente vão publicando os seus livros de testemunho deste tempo de mudança. Ora, mudanças é o que ele ainda só pressentiu nas margens do Mékong foi a possibilidade ainda desfrutar a lentidão do tempo nesse Laos, aonde o rio é crismado de «Mãe das Águas» e as mulheres protagonizam rituais nas margens, quando uma viagem por ele se prepara.
O elefante é o animal emblemático deste país. Está no escudo nacional, mas, principalmente se é branco, indicia prosperidade, boa sorte. Por isso é tão cobiçado, que quem um deles consegue capturar, encarrega-se de o esconder num refúgio seguro, aonde esteja a coberto de algum roubo.
Se existem mudanças, elas são particularmente notórias nos «spreed boats», ou seja lanchas a motor, extremamente velozes, que levam, meia dúzia de passageiros sem disponibilidade para apreciar o desfile de pessoas e paisagens ao ritmo dos barcos mais tradicionais.
O rio fertiliza os arrozais enche de peixe as redes. Por isso camponeses e pescadores vão alternando enquanto o barco, que transporta o narrador, prossegue a sua rota com um carregamento de que foi incumbido. Mas a alimentação não se limita ao arroz ou ao peixe. Tudo quanto se mexa é para comer, sejam ratos, macacos ou morcegos. Nalguns casos, referem-se as virtudes benfazejas de alguns órgãos mastigados no aumento da potência sexual.
À noite os barcos param na margem para prosseguirem caminho ao dealbar do dia. Às vezes a Lua eclipsa-se. Fazendo crescer a inquietação destas populações que temem vê-la tragada em definitivo pela Grande Noite.
Perto da antiga capital - Luang Prabang - os monges budistas recebem arroz nas suas malgas, distribuídas por mulheres apostadas em conquistar os bons auspícios dos seus deuses. São eles quem dá vida aos pagodes e aos templos, que rodeiam o antigo e esplendoroso palácio real.
Vencida essa etapa o rio torna-se demasiado turbulento com os seus rápidos, que se julga constituírem morada de caprichosos génios. Ou da garimpagem do leito do rio aonde as jovens camponesas procuram ouro com os seus coadouros. Mas as poucas gramas assim obtidas à custa de intenso labor, terão vindo do rio em si ou das embarcações que, todos os anos se afundam a montante? Uma pergunta que fica em aberto…
O rio é tão perigoso, que as famílias vêm anualmente a umas grutas a juzante de Luang Prabang para entregarem as suas oferendas aos sacerdotes. Que encenam os conhecidíssimos ciclos de reencarnação, procurando vir a habitar o corpo de um bicho bem menos sujeito a agressões ou de extermínio.
Hoje, à beira rio, as raparigas continuam a banhar-se , enquanto vão passando os barcos com mercadorias para a China ou para o Vietname. Muitas vezes pilotados por marido e mulher…
Quando os acidentes levam estas frágeis barcaças é comum a crença de que as mulheres afogadas transforma-se em pássaros, enquanto os homens adoptam a personalidade de um golfinho. Que, por este motivo, não são há muito incomodados...

quinta-feira, janeiro 26, 2006

RECORDAR FALKENAU


Impressionante o documentário de Emil Weiss sobre o filme rodado por Samuel Fuller no campo de concentração de Falkenau no dia 9 de Maio de 1945.
É o próprio realizador norte-americano, já desaparecido em 1997, quem faz o relato em off das imagens por si então colhidas com uma câmara de amador.
Nos dias anteriores ele participara naquele que terá sido o último combate da II Guerra Mundial. Ocorrido nos Sudetas, exactamente no mesmo local, aonde sete ou oito anos antes, Neville Chamberlain proclamara ao mundo, que a paz estava garantida… Como se a História fosse caprichosa e destinasse o epílogo de uma tragédia ao local aonde ela se iniciara…
Uma tragédia, cuja dimensão mais terrível traduzida nos cadáveres abandonados à pressa pelos muitos campos de concentração, já começava a ser negada pelos que insistiam em encontrar explicações para a loucura criminosa de Hitler e dos seus comparsas.
Precisamente ali, em Falkenau, os notáveis da cidade atreveram-se a negar essa evidência ao capitão Richmond dessa mítica divisão Big Red One, que protagonizara esse derradeiro combate.
Foi esse militar, que instou o jovem Samuel a filmar o que se seguiria: esses notáveis foram «convidados» a retirarem os cadáveres esqueléticos das vítimas mais recentes dos crimes ali praticados ao lado das suas casa burguesas, a vesti-los, a alinhá-los por cima de lençóis brancos e, enfim, a enterrá-los numa vala comum. Depois de os transportarem pelas ruas quase desérticas de uma cidade envergonhadamente refugiada na ostensiva indiferença a um cortejo, que a acusava de cumplicidade passiva ou activa com os criminosos...

terça-feira, janeiro 24, 2006

REMOTO PASSADO

Já remoto passado parece a eleição de Cavaco Silva para Presidente da República. E, no entanto, só foi ontem…
No emprego ainda houve quem aludisse ao meu eventual desagrado com o resultado, mas a minha reacção cortou qualquer hipótese de prolongar esse desconforto:
- Quase nos cinquenta anos já vivi o suficiente para perceber que às derrotas de hoje se sucedem as vitórias de amanhã e vice-versa!
Essa relativização de algo que, ainda há pouco tempo, me causaria tamanha instabilidade emocional é outro dos ganhos desta maturidade conferida pelas rugas, que se vão acentuando no rosto…
Mas é óbvio o meu contentamento com as vitórias de Michelle Bachelet no Chile ou de Evo Morales na Bolívia. Ou o regresso de Lula da Silva à liderança das sondagens. Quando é a esquerda a vencedora iludo-me com a possibilidade de estarmos no limiar de uma sociedade mais justa e fraterna. Porém, as reportagens sobre as pessoas que votaram no novo Presidente elucidam-nos bem de como esse limiar é uma meta bastante distante. Quer numa aldeia em que os 61 eleitores deram 100% a Cavaco, quer em Grândola aonde há quem se mostre indigno do símbolo representado por tal burgo, os alegres apoiantes do vencedor revelam-se velhos em idade e em ideias, iletrados e boçais. Sem qualquer semelhança com essa gente de qualidade, que surge normalmente associada às candidaturas de esquerda, sejam elas mais intelectuais como no caso dos socialistas ou dos bloquistas, ou mais genuinamente populares no caso dos comunistas.
A vitória de Cavaco não vai significar nenhum drama, mas é o Portugal mais avesso aos caminhos da História, que acaba de pôr em Belém um político em quem é difícil reconhecer convincentes qualidades...

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Uma rapariga santa?

Há objectos assim: como que vindos de outros planetas e a aterrarem no nosso para surpreenderem, para nos confrontarem com as nossas rotinas, as nossas certezas.
«La Niña Santa» é um filme argentino realizado por Lucrécia Martel, mas igualmente com os Almodovares no genérico a título de produtores executivos. Mas a forma como aborda os temas concebidos pela sua criadora nada têm a ver com um cinema europeu e, muito menos, norte-americano.
A história é simples: num hotel termal da província v0lta a reunir-se um Congresso de Medicina, que leva até aí umas dezenas de participantes.
Um deles é o dr. Jano, que vive angustiado entre os seus desejos e a imagem social. Os primeiros dedica-os a uma rapariga adolescente, que surpreende no espectáculo de rua de um músico capaz de fazer sair sons dos seus movimentos e de um sintetizador electrónico. È no meio da multidão de espectadores, que ele aproveita para se encostar a Amália e a excitar-se com essa presença do seu traseiro encostado ao seu sexo. Sem saber que ela é a filha da dona do hotel, essa Helena despeitada por saber o ex-marido em vias de ser pai de dois gémeos e ansiosa por encontrar uma nova relação afectiva, que a retire do seu vazio sentimental.
Há, pois, um triângulo amoroso, que se esboça entre mãe e filha e esse homem de meia-idade, que vem de fora.
E as contradições de cada um deles: se o médico foge de Amália, quando ela o assedia, a rapariga vive a rebeldia para com uma religião católica quase fundamentalista, que procura assimilar nos rituais sem lhe conseguir corresponder nos preceitos.
A sociedade argentina tal qual surge aqui representada é surpreendente: cheia de preconceitos relacionados com essa influencia clerical, mas a rebentar por todas as costuras desse espartilho de aparências. O hotel termal é, a esse título, um microcosmos elucidativo quanto a essa revolução de valores e de costumes: por muito que uma funcionária passe o tempo a desinfectar os quartos e os salões ou uma promotora de uma empresa farmacêutica seja despedida por passar a noite com um dos médicos organizadores do Congresso, há um desejo omnipresente em quase todos os personagens: até na cozinheira, que foge da cozinha para aproveitar a sua função de fisioterapeuta para contactar com a pele dos que a ela recorrem para massagens. Ou a melhor amiga de Amália e sus condiscípula no colégio religioso, que não hesita em se deixar sodomizar pelo primo sempre que tem oportunidade, apesar de decidida a preservar a virgindade até ao casamento. Uma outra forma de demonstrar como, à falta de poderem assumir o desejo pelo sexo do outro e arcarem com as consequências - a gravidez - os personagens optam por opções de substituição.
Inteligente, e a contra-corrente de um cinema imaturo, feito para adolescentes, o filme de Lucrécia Martel opta por um final em aberto: apesar de estar iminente o desmascaramento da perversão de Jano, o filme acaba antes disso acontecer. Permitindo-nos todas as possibilidades de recriação deste universo e do que ele evoluirá a partir daí. Porque em sociedade tão condicionada é pela via do escândalo, que ela pode ver estilhaçados todos os seus fundamentos reaccionários. Libertando quem nela se frustrava para horizontes bem mais abertos…
Mas comecei por comparar este objecto a um autêntico alien. Porque, em aparência, todo este ambiente já nos parece tão distante: o salto dado em Portugal nos últimos trinta anos foi de tal monta, que muitos destes espartilhos parecem longe de nós. A revolução sexual parece instalada desde que a vitória de quem defendia o divórcio contra a regra do casamento para toda a vida passou a possibilitar que o amor passasse a ser eterno … apenas enquanto durasse.
E veio depois a condenação social de quem insiste em criminalizar a prática do aborto, ou o progressivo respeito pelos direitos à diferença de lésbicas ou de homossexuais.
Mas as histórias de pedofilia e de outras agressões contra as crianças mostram que existe ainda um potencial muito grande de frustração sexual, que vitimiza os mais novos e desprotegidos.
O que «La Niña Santa» explicita é a incompatibilidade de uma igreja, que não seguiu a via imprevisível, mas prometedora do Concílio Vaticano II e decidiu retomar uma visão do mundo, que é a da sociedade campesina da época pré-industrial. Cavando, mais e mais, o abismo entre si e uma sociedade aonde o desejo de felicidade ainda se confunde fundamentalmente com a expressão mais física das emoções…
A Argentina de Lucrécia Martel não estará muito distante de um certo Portugal, que conhecemos nas nossas infâncias. Quando a Igreja do Monte ainda se enchia para a missa de Domingo e os desejos refreados dos que nela se recolhiam eram expressados em histórias de bruxedos e de possessões demoníacas.
A imagem final - aquela em que as duas amigas flutuam na piscina - é por si mesma eloquente quanto à mensagem final do filme: as adolescentes alheiam-se dos dramas dos adultos de cujas teatralidades só lhes chegam os ecos e mantém-se à superfície, expostas de frente para o futuro e não de costas como os medos e preconceitos ligados ao passado as terão até ali imposto.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

A DIFERENÇA ENTRE O ESTEREOTIPO E A CRIATIVIDADE

O «Público» designou «Million Dollar Baby» como o melhor filme do ano. Uma oportunidade para identificar os seus leitores com uma entrevista dada por Clint Eastwood a Peter Bogdanovitch. Que recorda o que, já em 1968, Don Siegel dizia a propósito daquele que se tornou num dos principais realizadores norte-americanos dos nossos dias: «Clint Eastwood tem uma fixação no anti-herói. É o seu credo na vida e em todos os filmes que fez até agora insiste em ser o anti-herói. Nunca trabalhei com um actor menos preocupado com a sua imagem».
Ao seu entrevistador, Clint Eastwood conta como alcançou o aspecto visual do seu premiadíssimo filme: «Disse ao director de fotografia, Tom Stern: ‘Vamos tratar deste filme como se fosse a preto-e-branco. Se tivesse coragem filmaríamos a preto-e-branco.’ Falámos de sombras e então o que fiz, quando acabámos, foi garantir que o laboratório dessaturava a cor até ao limite. Retirei a cor, especialmente para o terceiro acto, quando vamos para o hospital, as paredes brancas, os lençóis, a nudez. Queria um ‘look’ dos anos 40. Disse ao responsável pelo guarda-roupa: ‘Vamos filmar isto como se fosse a preto-e-branco, não quero o ‘Feiticeiro de Oz’, quero que a cor seja imperceptível.»
O filme de Clint Eastwood foi um dos que, independentemente, das suas qualidades, não conseguiu evitar o decréscimo progressivo do número de espectadores nas salas de cinema: 2005 foi um ano de grande crise na indústria cinematográfica e no seu sector de exibição em particular. Os problemas agora evidentes nas salas do Paulo Branco são reflexo dessa crise.
Sobre ela escreve João Mário Grilo no mesmo «Público»:
«A questão do cinema como experiência de continuidade pode estar em risco. Hoje os norte-americanos já trabalham para filmes que integram dentro de si essa rotina de tempos fortes e tempos fracos. Ninguém aguenta uma hora e meia de montanha-russa, é preciso que ela suba e depois desça, e os filmes têm essa lógica onde há momentos em que se pode largar um pouco a atenção. O ‘King Kong’, desse ponto de vista, é um filme exemplar. Tem os intervalos metidos lá dentro: dez minutos de grande espectáculo, depois um intervalo - e esse intervalo não é um intervalo em concreto, é a parte mais humana da história, onde uma pessoa pode sair para ir comprar água, pipocas e regressar para dentro do cinema. E por aí adiante.
As coisas estão a avançar mais depressa do que as pessoas estão a ser capazes de digerir. O cinema foi a arte que mais mudou em menos tempo. E nenhuma outra arte experimentou isso.»
«Odete», filme de João Pedro Rodrigues, agora igualmente em Lisboa, não tem, por certo, essas tácticas de manipulação dos seus espectadores. Basta ler o que diz o realizador em entrevista ao mesmo jornal:
«Eu gosto do lado do cinema de observar, vem da ornitologia - a minha formação é de biologia e eu queria estudar ornitologia quando era mais novo. Por um lado, ver o tempo que demora a acção; o que tento captar sempre em cada cena e em cada emoção é o momento-chave… Gosto de filmes que nos dão a ver , por exemplo, como é que o corpo se mexe num determinado espaço. Um filme também é isso: como é que um actor vai do ponto A ao ponto B e como é que esse percurso pode ser mais ou menos interessante, contando determinadas coisas, exprimindo uma determinada emoção. Tento que haja sempre em cada plano e de um plano para o outro, uma tensão, que se passem coisas. Podem ser pequenas coisas, ínfimas, mas que sejam interessantes. (…) Para mim, os meus filmes não são uma seca. Porque acho que há uma tensão que pode estar na lentidão e não na velocidade. A coisa mais difícil no cinema é o ritmo - - as pessoas estão habituadas a ver num minuto trinta planos, em que o ritmo é dado pela montagem, e eu acho que o ritmo não é dado pela montagem. É dado pela tensão interna de cada plano, ou pela que cria com o seguinte ou com o anterior. Tento sempre ir no sentido de uma simplicidade: ter uma ideia e tentar encontrar o cerne dessa ideia, de uma maneira simples, mas que talvez não seja óbvia.»
Quem, no ano transacto, foi premiado por uma atitude de rejeição das ideias dominantes foi Harold Pinter, o drmaturgo inglês, que ganhou o Nobel. E que, desassombrado, acusou Bush e Blair de serem criminosos. «Deviam ser julgados no Tribunal Penal Internacional» pela invasão do Iraque. «Mas Bush foi esperto. Não ratificou o Tribunal Penal Internacional.»
Sobre ele escreve-se, ainda, no mesmo «Público»:
«Aos 75 anos, debilitado fisicamente por um cancro, mas com a vitalidade mental bem acesa, o dramaturgo inglês falou do seu teatro político dizendo que a objectividade era essencial, acusou os políticos de não estarem interessados na verdade mas na manutenção do poder e atacou como nunca a política externa norte-americana: ‘Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras militares de direita do mundo depois da II Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, claro, Chile (…) Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, viciosos, sem remorsos, mas muito poucas pessoas falam deles. (…) Exerceram no mundo um tipo de manipulação clínica do poder, disfarçado como uma força do bem universal. É um acto de hipnose brilhante, até perspicaz, muito bem sucedido’».
De outra forma de crime imperialista fala o realizador austríaco, Hubert Sauper, cujo documentário «O pesadelo de Darwin» substituiu «Aurora» no Nimas. Um filme aonde se demonstra uma tese muito forte: «É incrível como seja lá onde for que sejam descobertas matérias-primas os habitantes locais morram na miséria, os seus filhos se tornem soldados e as suas filhas prostitutas.»
Talvez por tudo isto, a fadista Aldina Duarte, que lança agora mais um disco, escolhe muito bem o pequeno núcleo de pessoas com quem se identifica. «São pessoas que numa época de grande barulho arriscam fazer coisas de grande intimidade - é uma forma de nos humanizar.». Ela diz que procura gente assim - tipo Tom Waits - porque lhe «faz confusão viver num mundo em que ninguém nos faz pensar».
O que essa gente faz «é uma espécie de alerta, algo que vai contra a maré».
De Clint Eastwood até à ex-mulher de Camané passámos pelo discurso de muita gente que continua a prezar um mundo às avessas das ideias estabelecidas. Seja pela estética - no caso daquele realizador norte-americano ou do de «Odete» - seja pelas ideias - no caso de Pinter - é reconfortante sentir que continua a haver quem resista, quem teime em mudar o que parece tão cristalizado, tão estagnado. Mas se, como demonstrava Galileu, até a Terra se move, muito mais se movem os homens, que nela continuam apostados em descobrir os caminhos da sua felicidade.

quinta-feira, dezembro 29, 2005

UMA QUESTÃO DE MANIPULAÇÃO...

Num comentário a um dos posts, inserido no meu Blog, a G. coloca a questão de existir manipulação nas imagens, que nos precipitam para a compaixão para com as vítimas do tsunami em detrimento das desprezadas vítimas do Paquistão ou da Cachemira.
E é claro, que devemos reconhecê-lo: todas as imagens, sejam elas quais forem, carregam em si o estigma de uma manipulação. Porque nunca são objectivas nem, na maioria, inocentes. Elas transportam, implícitas, o ponto de vista de quem as captou, as montou, as realizou.
Seres permeáveis a todas as mensagens que nos rodeiam, podemos assumir uma certa proactividade, que nos permita ser manipulados pelas que mais nos convenham: quando compro o jornal A em vez do jornal B, quando prefiro parar o zapping no canal C em vez do canal D ou quando opto pelo filme E do cinema F em vez do filme G do cinema H, estou sempre a optar por entre as diversas manipulações com que me procuram condicionar num ou noutro sentido.
É por isso que a questão da propriedade dos meios de comunicação é muito mais relevante do que cingi-la à mera discussão da liberdade de expressão. Em Itália, por exemplo, há em aparência o respeito por esse pressuposto embora a realidade, condicionada pelo poder exagerado de Berlusconi nas televisões e nos jornais, seja bem diversa. Dirão alguns que isso não impedirá a sua previsível derrota nas próximas eleições mas, a acontecer, ela não se medirá na sua mais adequada dimensão quanto aos méritos ou deméritos das propostas políticas colocadas aos eleitores. Apesar de muito negativa para a ampla maioria dos eleitores, a lista comandada pelo cavalieri é capaz de ser derrotada por uma margem muito inferior à merecida…
É possível estabelecer um paralelo com o que se passará com as eleições presidenciais do próximo mês: foram os jornais e as televisões dominadas por quem detém o poder económico e pretende colher maiores dividendos do parcelamento da riqueza nacional, quem incensou um político medíocre, cuja governação foi um fiasco apenas escamoteado pelos então lautos subsídios comunitários, e que agora se apresenta como salvador da pátria.
Uma clássica operação de manipulação para vender gato por lebre. E que assusta os próprios infractores: depois de escorregar com a óbvia intromissão na área de intervenção do Governo ao propor um secretário de Estado para tomar conta do capital estrangeiro, ele foi obrigado a despir a máscara de quem nunca tem dúvidas e raramente se engana. E a dar o dito por não dito numa atitude muito pouco presidenciável…
Por isso há quem tema o que se irá passar nas próximas semanas, como se detecta nalguns colunistas dos jornais económicos mais relacionados com esse poder económico, que nele aposta para «temperar» as preocupações sociais do Governo: e quem admita a possibilidade de ver esfumar-se este favoritismo inquestionável se José Sócrates entrar em força na campanha…
A eventual divulgação da imagem de um político em ascensão - cuja determinação e sentido de Estado estão a produzir resultados, mesmo contra as egoísticas reivindicações das diversas corporações - ao lado do candidato Mário Soares poderá criar o efeito manipulador pretendido por quem se assume de esquerda. E virar por completo a relação de forças entre as várias alternativas surgidas nestas eleições...

quarta-feira, dezembro 28, 2005

ELEFANTES NO RIO DE AREIA

Um documentário, que marca o dia é o da BBC sobre os elefantes da Namíbia. Porque se a vida é difícil para tantos povos e animais nas mais diversas latitudes, os elefantes do deserto da Namíbia sobrevivem em condições extremas.
Durante anos é capaz de não chover, reduzindo o leito do Rio de Areia, aí existente, a uma paisagem de pedras e de terra cinzenta rodeada pela cor marciana das montanhas adjacentes.
A morte não é difícil de encontrar por estes lados: bastará a opção errada por um trilho, que conduz a coisa nenhuma, para mãe e cria se verem condenadas.
Ademais as viagens destes nómadas sob o sol inclemente são a única solução para o facto de existirem poços de água num local e vegetação comestível noutro muito distante.
Ainda se os seus estômagos tivessem a capacidade do dos rinocerontes, que tudo devoram, mesmo as plantas carregadas de veneno! Mas não: o desafio da sobrevivência cria engenhos, que não são assim tão alargados…
Vale o facto de, quando a situação parece mais desesperada, a chuva cair e transformar em leitos caudalosos o caminho de pedras do dia anterior. Mas é uma água efémera, porque a terra sequiosa bebe-a voraz. Só dando tempo a que as sementes, em hibernação há muitos meses, criem breves campos floridos.
Ao ver essas imagens cabe perguntar quais os efeitos do aquecimento global do planeta na alteração dos ecossistemas mais inóspitos. Apesar de terem vida distribuída por todos os seus cantos, a subida de um grau centígrado poderá causar um morticínio de que nem sequer tomemos imediata consciência… E, então os cem rinocerontes da região, os não muitos mais elefantes, os chacais, os palhaços do deserto (lagartos, que executam uma dança singular para não sobreaquecerem as patas), as gazelas e outros animais aí ainda livres, poderão ser contabilizados à conta das espécies extintas.

terça-feira, dezembro 27, 2005

UM ANO DEPOIS DO TSUNAMI

Passado um ano sobre o tsunami, que varreu as costas do Sudoeste Asiático, as televisões foram pródigas em imagens sobre essa devastação.
Na maioria já as conhecíamos, mas há sempre uma certa atracção mórbida por revê-las, ao constituírem uma forma de exorcizarmos o nosso medo da morte, as nossas próprias inseguranças perante tudo quanto nos ultrapassa...
Estamos, de facto, num tempo de contínua obsessão com tantas fragilidades íntimas. Longe, muito longe, vai o passado em que nos acreditávamos invencíveis, irresistíveis, imortais. Em que os nossos desejos pareciam transformar-se em realidades.
Não foi assim. Crescemos, amadurecemos e encontrámo-nos reduzidos à dimensão de meros peões num xadrez planetário, aonde os reis e as rainhas é quem mandam…
E sentimos crescer o medo de sofrer.
Quando vemos o sucedido com este tipo de catástrofes, impressiona-nos a pequenez do homem perante a força dos elementos. Que se revelam cada vez mais mediáticas nas suas expressões diversas.
Inundações com as de Nova Orleães ou terramotos como o da Cachemira, só vieram confirmar que, em matéria de cataclismos, não há fronteiras humanas bem definidas: quer os países ricos, quer os mais pobres, são espaço privilegiado para as explosões de um planeta, que aposta em confundir as mais primárias explicações metafísicas.
Somos, pois, pequenos demais neste planeta de que somos hóspedes quase sempre abusadores dos seus equilíbrios.
Não adianta invocar um qualquer deus, nem acreditar no facto de serem coisas que acontecem só aos outros. Por que pode suceder-nos, quando menos esperamos.
Daí a questão natural: o que faria eu se estivesse ali?
É também por isso que revisitamos estas imagens: com elas acaba-se sempre por se aprender algo de possível, mesmo que remota, utilidade num futuro indefinido: por exemplo, como se detecta um tsunami através da perturbação dos animais ou do recuo das águas até para além da linha da maré baixa. Ou de como muitas mortes teriam sido evitáveis se, passada a primeira onda, a curiosidade não tivesse impelido para a praia muitos dos que a ela tinham sobrevivido. Um erro, que estivera, aliás, na origem de muitas das mortes do terramoto de 1755…

MOZART: O ARTISTA COMO SIMULADOR

No conjunto de textos sobre Mozart, que o «Nouvel Observateur» publica, o de Jacques Drillon é, não só o primeiro como um dos que melhor situa a personalidade do criador sem cuidar dos seus momentos cronológicos. O texto, que se segue é uma montagem dos trechos mais significativos desse artigo:

“O pai, Leopold, ensinou-lhe tudo. Por exemplo que o mundo é governado pelos ricos, que o dinheiro dá poder, mas não inteligência, nem talento; que é preciso admitir com o torcionário católico e romano, que a Terra não roda em torno do Sol, e a sorrir à marquesa analfabeta.
Mozart não leu nada, mas aprendeu tudo. Há pessoas assim. Talvez ele tenha aprendido isso tudo através da música? A música traz e recebe, abandona e conserva. Em troca do muito, que ela lhe ensinou, Mozart muito terá ensinado à musica.
A educação, que o pai lhe transmite tem um fundamento elementar: é preciso ser rico; para ser rico, quando se nasceu pobre, é preciso ganhar dinheiro; para ganhar dinheiro (sem o roubar) é preciso ter de que vender; para ter de que vender, é preciso ter feito algo; para ter feito algo é preciso saber fazê-lo; em suma: ao trabalho.
O estado natural de um objecto é o repouso, a estabilidade. Um lápis pousado sobre uma mesa; a mão de um homem, pelo esforço que ele efectua, mantém seguro o lápis num equilíbrio artificial. Depois, larga-o. O lápis procura a sua posição própria de equilíbrio, como se a desejasse. É assim, que o objecto vai variando de repouso em repouso, como o Sol vai do crepúsculo matinal ao crepúsculo do fim da tarde, confundindo-se numa única imagem, arroxeada, lânguida e plana. A melodia mozartiana é assim: descontraída, tensa, descontraída. Quase sempre tem a forma geral de um sino, que se eleva e volta a cair, como a luz da «Jovem Rapariga do Turbante» de Vermeer. Mozart segue à letra a curva dos fenómenos naturais: repouso, desejo, prazer, repouso; nascimento, vida, morte, e assim sucessivamente.
Amamos Mozart, que sentiu, mais do que reflectiu, parque o seu verde é o da erva, o seu azul é o do céu, e o seu perfil o das montanhas.
Se nunca se conseguiu explicar Mozart é porque se procurou a solução do seu génio pelo lado das suas qualidades. Pareceria lógico fazê-lo. Mas talvez fosse preferível procurá-lo pelo outro lado. O da sombra, aonde se escondem os vícios, os defeitos, as cobardias.
Como o homem de negócios contorna a lei em seu proveito, aparentando respeitá-la, Mozart torneia a lei paterna. A palavra ‘encomenda’, que, em francês, significa tanto a ordem de compra, como a obra encomendada, parece ter sido fabricada para ele. Em Mozart tudo é sabotado. Porque o Outro é o maior obstáculo, aquele que deverá ser enganado, rodeado. Então Mozart faz de conta que respeita a encomenda, mas subverte-a. Os instrumentos, os cantores, os chefes de orquestra, sabem que, nele, a simetria só é fachada. Tudo é curto em demasia ou mais longo do que o exige a norma…
Mozart apresenta-se a uma luz, que não é a sua, faz o contrário do que diz, oculta a perspectiva. Depois, mostra, depois esconde, e cada confissão tem por preço um mistério.”