sábado, setembro 06, 2025

Carmen na versão Grace Bumbry (e Karajan)

 


Já vi muitas sopranos e mezzo-sopranos interpretarem o papel de Carmen e tenho memória de algumas emblemáticas, mesmo a de cantoras menores só momentaneamente iluminadas pela personagem e capazes de se superarem (o caso de Julia Migenes no filme de Francesco Rosi). Mas a mais memorável é decerto a de Grace Bumbry dirigida por Karajan em 1967. Se seria necessário exemplo para comprovar a redenção do maestro alemão como militante nazi o tê-la escolhido para o papel, seria eloquente. Embora seis anos antes já ela tivesse vencido os preconceitos racistas e sido um sucesso no Festival de Beyreuth. E, no entanto, ela até não sentia empatia por Carmen cujo carácter desprezava. Mas dizia representá-la como ela deveria ser.

A história de Grace Bumbry é uma jornada de talento e perseverança face a obstáculos raciais. Nascida em St. Louis, Missouri, em 1937, cedo foi notada e a promessa de um futuro brilhante parecia evidente. No entanto, as barreiras do preconceito logo se fizeram sentir. A bolsa para o Conservatório de Saint Louis foi revogada devido à cor de pele, um choque que, em vez de a abater, parece ter fortalecido a sua determinação.

Apesar da rejeição inicial, Bumbry continuou a lutar pelo seu lugar na música. O talento inegável acabou por levá-la a ser notada por grandes nomes da ópera, e o convite para o Festival de Bayreuth em 1961, para cantar a Vénus em Tannhäuser, foi um marco. A escolha de uma cantora negra para um papel tão proeminente no templo de Wagner, um compositor muitas vezes associado a ideologias de supremacia racial, foi um ato de coragem e um sucesso avassalador. O público e a crítica foram unânimes nos aplausos, com o sucesso a ser noticiado a nível mundial.

A sua interpretação de Carmen com Karajan em 1967 demonstrou a sua evolução artística. Embora não se identificasse com a personagem o distanciamento pessoal permitiu-lhe uma interpretação única e poderosa. Em vez de simplesmente encarnar a sedução clichê, ela procurou a verdade da personagem. A sua Carmen era uma mulher de força, de uma liberdade desafiadora e de uma vulnerabilidade profunda. A voz, rica e poderosa, transmitia a dualidade de Carmen: a paixão e a insolência, a independência e a solidão.

O que torna a Carmen de Grace Bumbry tão memorável não é apenas a sua técnica vocal impecável, mas a profundidade da sua atuação. Ela representava uma Carmen que não era apenas um estereótipo, mas uma mulher complexa, multifacetada e, acima de tudo, humana. A performance continua a ser um testemunho do seu talento singular e da capacidade de superar os preconceitos do seu tempo, deixando marca na história da ópera. 

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