Quem não tem cão caça com gato. É o provérbio lembrado ao vermos o filme de Rita Nunes sobre a probabilidade de um terramoto em Lisboa com a dimensão do de 1755. Não dispondo dos meios para uma abordagem ao estilo de Hollywood, que seria decerto interessante, ela opta por situar o filme no dilema dos cientistas quanto à bondade de se decidir ou não dar conta dessa hipótese junto da população sabendo-se de antemão o caos - e as vítimas! - que se verificarão.
O filme aborda este conflito com uma abordagem intimista e reflexiva, muito distante dos espetáculos de destruição. A sua relevância ganha uma dimensão ainda maior quando lembramos que no verão do ano passado, todos sentimos um forte abanão de norte a sul, um evento que nos trouxe de volta os medos atávicos transmitidos de geração em geração pelos sobreviventes da tragédia do século XVIII. Essa memória recente e coletiva torna o dilema central do filme, que antes poderia ser visto como uma mera hipótese académica, numa questão de urgência e de grande ressonância emocional.
Em vez de nos mostrar os edifícios a ruir ou as vidas a perderem-se, Rita Nunes foca-se na tensão moral e psicológica que consome os protagonistas. O enredo desenrola-se quase inteiramente em salas de reunião, laboratórios e gabinetes, onde as conversas, as discussões e os silêncios pesam mais do que qualquer imagem de catástrofe. A narrativa é feita de diálogos densos, explorando a ética da informação e a responsabilidade de quem a detém.
O dilema central é vivido por um pequeno grupo de sismólogos e especialistas em gestão de crise, cada um com a sua própria perspetiva e conflitos internos. A protagonista defende a transparência absoluta, argumentando que a população tem o direito de saber e que a ocultação de dados é uma traição à ciência e à sociedade. Do lado oposto, um colega mais cauteloso levanta a hipótese de que a divulgação da informação, por mais precisa que seja, irá inevitavelmente levar ao pânico, à rutura social e até a um número de mortos maior do que o que a própria catástrofe poderia causar. Ele questiona se a verdade é um bem absoluto ou se, em certas circunstâncias, pode tornar-se um instrumento de destruição.
O filme explora ainda as vidas pessoais dos personagens, mostrando como o peso desta decisão infiltra-se nas suas famílias e relações. Vemos um dos cientistas a tentar acalmar a sua mulher e filhos, que, sem saberem a razão exata da sua angústia, sentem a tensão crescente. Outra personagem debate-se entre a lealdade profissional e o desejo de proteger os seus entes queridos, ponderando se deve alertá-los discretamente, traindo assim o sigilo do grupo. Este plano mais íntimo e humano serve para sublinhar que o dilema não é teórico, mas uma decisão com consequências devastadoras e irreversíveis para quem o vive na primeira pessoa.
A forma como a realizadora filma essas interações, com uma câmara que se aproxima dos rostos e capta as hesitações, os olhares de preocupação e a exaustão dos cientistas, transforma uma potencial "falta de meios" num estilo de cinema autoral e expressivo. “O Melhor dos Mundos” não é um filme sobre o terramoto, mas sobre a humanidade frente a uma escolha impossível. A sua força reside precisamente na capacidade de Rita Nunes de transformar uma ameaça física numa crise de consciência, mostrando que, por vezes, os maiores dramas não acontecem com o estrondo da Terra a tremer, mas no silêncio perturbador das decisões que mudam o destino.
Sem comentários:
Enviar um comentário