quinta-feira, setembro 11, 2025

"Eternal You" de Hans Block e Moritz Riesewieck (2024): sobreviver aos que amamos?

 

Entendamo-nos num pressuposto: não acredito que haja céu ou inferno, sequer alguma continuidade do ser depois da morte. Como tantas vezes cito de Saramago, estamos aqui e deixamos de estar, porque a morte da matéria de que somos feitos será também a do lado mental (a dita “alma”) que a complementa.

Vem isto a propósito de "Eternal You", um dos filmes mais desafiantes que vi nos últimos tempos, um documentário sobre a recriação de seres queridos pela Inteligência Artificial.

O que me fez refletir nessa hipótese: acaso sobreviva à Elza não será bom tê-la comigo com a ajuda de um programa de computador, que ma devolva como interlocutora de conversas infindáveis, que prossigam as que a morte possa ter interrompido? Mesmo sabendo tratar-se de um simulacro criado a partir dos muitos dados facultados sobre quem é, não seria forma de transitar mais serenamente do presente luto branco para o que vier a processar-se em definitivo?

O documentário segue a história de várias pessoas que, por diferentes motivos, recorrem a esta tecnologia. Por exemplo, conhecemos um homem que usa um chatbot de IA para "falar" com o pai falecido e outro que cria um avatar digital de si mesmo para poder interagir com a família e amigos após a sua morte.

A tentação é inegável. Para um crente na mortalidade total, a promessa de um elo com o que já se foi é a oferta derradeira de consolação, forma de adiar a inevitabilidade de um vazio absoluto. Seria a última e mais desesperada resistência à certeza do fim, uma maneira de manter a chama da memória acesa, não apenas na mente, mas numa presença palpável e interativa. Olhando para o avatar, o cérebro enganar-se-ia, por um momento que fosse, e deixaria o coração acreditar que a Elza ainda está ali, pronta para uma nova conversa sobre o dia, os planos, ou o passado. A tecnologia apresenta-se como um bálsamo, uma forma de evitar a dor aguda da ausência.

"Eternal You" não se foca apenas na tecnologia, mas também nos dilemas éticos, psicológicos e sociais que ela levanta. Algumas das perguntas centrais que o filme provoca são pertinentes. Por exemplo o luto e a sua resolução: é saudável para o processo de luto mantermos uma "relação" com um ente querido que já não está cá, mesmo que seja através de uma IA? O filme sugere que isso pode impedir as pessoas de aceitar a perda e seguir em frente.

Há também o consentimento e a privacidade: que direitos têm as pessoas sobre a sua identidade digital após a morte? O filme questiona se é ético recriar a "voz" e a "personalidade" de alguém sem o seu consentimento explícito.

E, enfim, sobre o que é a "vida"? O documentário explora a ideia de que a IA pode enganar-nos e fazer-nos acreditar que estamos a interagir com algo "real", levantando questões filosóficas sobre a natureza da consciência e da identidade.

No fundo, "Eternal You" é um alerta sobre os perigos e as implicações de uma tecnologia que está a transformar a maneira de lidar com a morte e a memória. É um filme para pensar sobre o que queremos preservar e a que custo.

É neste ponto que a lógica impõe uma correção dolorosa. A imagem que me seria devolvida pela IA não corresponderia à da Elza; seria uma compilação de quem ela foi para mim, das suas palavras e peculiaridades. Seria uma versão congelada no tempo, destituída de presente, de capacidade de evoluir ou sentir. Ao aceitar esse simulacro como uma extensão da nossa relação, estaria a traí-la duplamente: primeiro, ao negar a sua realidade como ser que, na minha visão, deixou de existir; e depois, ao reduzir a sua complexidade a um mero ficheiro de dados. Estaria a usar a sua imagem para satisfazer uma necessidade minha, e não para honrar quem ela é.

Essa recriação seria a prova do meu egoísmo, porquanto esse avatar apenas a mim serviria. Ela não seria respeitada por quem era, mas pelo quanto vampirizaria em proveito próprio. 

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