Não tenho qualquer fascínio pelo sobrenatural por muito que ache piada a filmes de terror bem feitos e os ache entretenimentos catárticos. Fantasmas, bruxas e outras coisas semelhantes são-me alheios na crença de terem o mínimo fundamento. E, no entanto, é paradoxal que tenha sido o fascínio pela Teosofia a dar a Hilma af Klint a condição de pioneira da arte abstrata moderna, antecipando-se a Malevich, Kandinsky ou Mondrian. Hoje, a sua obra ainda é pouco conhecida nos habituais frequentadores dos museus e galerias de exposições.
O estatuto de precursora, conquistado a pulso por uma história reabilitada e uma série de exposições que, nos últimos anos, a trouxeram para o epicentro das grandes discussões artísticas, não pode ser dissociado da profunda e inabalável fé naquilo que não se vê. Hilma af Klint não estava a criar arte para o público dos salões ou para a crítica do seu tempo. Ela pintava para os seus "guias espirituais", para os quais as telas não eram apenas representações, mas veículos de comunicação com outras dimensões, um portal, uma interface onde os mundos visível e invisível se encontravam. É esta a grande ironia, a beleza e a complexidade da sua obra: um dos maiores saltos da história da arte ocidental foi dado não por um desejo de quebrar as barreiras da representação ou de explorar novas formas de expressão puramente estéticas, mas por uma missão espiritual. A abstração, para ela, não era um fim em si mesmo, mas uma ferramenta para manifestar o divino.
A era em que Hilma af Klint viveu era um campo fértil para esta ambiguidade. No final do século XIX, enquanto a ciência e a tecnologia avançavam a passos largos — a eletricidade, o telégrafo, o raio-x — a espiritualidade ganhava força como refúgio e resposta a perguntas que a ciência ainda não conseguia responder. O cientificismo e o ocultismo não eram opostos, mas muitas vezes coexistiam, alimentando-se mutuamente na busca por uma verdade mais profunda. Para Hilma e seu grupo de amigas, as "Cinco", as sessões de espiritismo e as práticas de escrita e desenho automáticos eram uma espécie de laboratório para a “alma”, onde as mãos, guiadas por entidades superiores, criavam formas e cores que a mente consciente não conceberia. As telas earam mapas de um universo metafísico.
A história biográfica de Hilma af Klint começa, de forma surpreendentemente convencional, na Academia Real de Belas-Artes de Estocolmo, onde formou-se em 1887. Ela era uma pintora talentosa e, durante a juventude, dedicou-se à paisagem e ao retrato, produzindo obras que se enquadravam perfeitamente nos cânones académicos da sua época. O seu talento era reconhecido e a carreira parecia traçada para o sucesso convencional. Era uma vida de artista-pintora perfeitamente normal para uma mulher da sua classe social e com os seus dotes. E, no entanto, por baixo desta superfície de aparente normalidade, fervilhava um mundo de crenças e práticas que a afastariam do estrelato e a relegariam a uma nota de rodapé esquecida na história da arte por mais de um século.
Foi a morte da irmã mais nova, num acidente, que a empurrou para a busca de respostas no espiritismo. O que para muitos era uma simples curiosidade ou um jogo de salão, para Hilma tornou-se uma investigação séria e a razão da sua arte. Ela tinha de fazer uma escolha entre a visibilidade dos salões de arte ou a privacidade de uma obra que estava ao serviço de algo maior, transcendente e invisível aos olhos mundanos. Foi a partir de 1906, que começou a pintar a série "Pinturas para o Templo", obras, enormes e radicalmente abstratas, criadas para serem um mapa espiritual para o templo que ela vislumbrava.
A sua vida tornou-se, assim, uma dicotomia fascinante. Ela continuou a produzir quadros convencionais para subsistir, e a sua obra realmente importante permaneceu secreta, fechada no atelier, acessível apenas a um círculo restrito de amigos e seguidores. Hilma af Klint pensava que o seu tempo ainda não estava pronto para aquilo que ela pintava e a decisão de se afastar do circuito artístico foi o ato mais ousado e visionário da sua carreira. No seu testamento, deixou inequívoca orientação: as suas pinturas abstratas só podiam ser reveladas vinte anos depois da sua morte. Ela compreendia que a sua obra, nascida de um universo de crenças marginais, necessitava de tempo para ser assimilada, de um contexto que só o futuro poderia proporcionar.
Foi precisamente o testamento que garantiu a sua imortalidade. A partir da sua morte em 1944, a sua obra permaneceu num armazém na Suécia, guardada com o zelo de quem compreende uma instrução, mesmo não entenda a sua totalidade. Durante décadas, os cerca de 1300 quadros e 26 mil páginas de anotações e cadernos de desenho permaneceram ocultos, respeitando a sua última vontade de só serem revelados passados vinte anos. Mas mesmo depois de 1964, e das tentativas do seu sobrinho Erik af Klint de os mostrar, a obra continuou a ser ignorada. O mundo da arte, que tinha consagrado os seus heróis abstratos masculinos, não estava preparado para esta subversão da história.
O ponto de viragem aconteceu nos anos 70 e 80, quando um grupo de historiadores de arte e curadores, liderados por Åke Fant, recusou deixá-la no esquecimento, apresentando-a como a primeira pintora abstrata.
Foi um processo lento e árduo. A obra de Hilma af Klint não cabia em nenhuma caixa preexistente. Não podia ser enquadrada mo Pós-Impressionismo ou no Modernismo; a sua arte parecia vir de outro planeta, de outro propósito. A base espiritual era vista com ceticismo, uma mancha, algo de que a história da arte moderna, no seu racionalismo, secundarizava.
A consagração viria de além-Atlântico. Em 1986, a exposição "The Spiritual in Art: Abstract Painting 1890-1985" no Los Angeles County Museum of Art (LACMA) apresentou, pela primeira vez e em larga escala, as obras de Hilma af Klint a um público internacional. Foi um momento de revelação, mas ainda assim a sua posição permaneceu à margem por mais algumas décadas. O reconhecimento definitivo e global só veio com a monumental retrospetiva de 2018-2019 no Museu Guggenheim de Nova Iorque. A exposição, que quebrou recordes de público, elevou Hilma af Klint de uma curiosidade histórica para uma das figuras mais importantes e radicais do seu tempo. As suas telas monumentais, com cores vibrantes, formas geométricas e símbolos enigmáticos, foram vistas não como os produtos de uma mística isolada, mas prova irrefutável de que a arte abstrata começou numa missão espiritual.
E assim, fica o paradoxo: o mundo que ela anteviu e para o qual a sua arte foi criada — um mundo que a pudesse compreender — não era um mundo mais espiritual, mas, ironicamente, podia separar a estética da crença e apreciar o seu génio. Um mundo que a aceitou não pelos guias espirituais, mas pela inovação artística que esses guias a levaram a produzir. A arte, nascida do invisível, tornou-se finalmente visível, e a sua vida, outrora marginal, passou a ser um dos pilares da história da arte moderna. E, no final de contas, a visão de um mundo mais evoluído para compreender a sua obra talvez se tenha cumprido, ainda que não da forma que esperava.

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