segunda-feira, maio 08, 2006

«A GAIVOTA»: PARADIGMAS REVOLUTOS

Há Irina Nicolaevna Arkadina, superlativamente interpretada por Rita Loureiro.
É uma conhecida actriz de teatro, que detesta ver-se envelhecer. Por isso o filho de vinte e cinco anos coloca-lhe um sério dilema: enquanto mãe deve amá-lo, mas a sua simples presença é bem demonstrativa de como já está longe do fulgor da sua juventude. Por isso é infeliz e semeia infelicidade à sua volta, quer inferiorizando os esforços criativos de Costia, quer negando-lhe o dinheiro, que o poderia ajudar a uma melhor inserção social.
E, quando o próprio amante a deixa em benefício de uma actriz mais jovem, ela não hesita em recebê-lo de volta, porquanto vive muito mais das aparências do que das realidades afectivas.
Numa peça em que quase todos são infelizes por viverem na frustração de não alcançarem os seus objectivos, Irina poderia personificar a felicidade do sucesso. Mas não: apesar da riqueza, apesar da beleza, apesar do sucesso junto do público, ela sente escoar-se por entre os dedos tudo quanto poderia dar-lhe o contentamento de ter chegado a algum lado…
O filho é Konstantin Gavrilovich Treplev, ou simplesmente Kostia. Na interpretação esforçada de Duarte Guimarães. Vinte anos depois seriam destes Kostias, que a Revolução de Outubro emergiria. Porque eles cresceram na burguesia e não têm dinheiro. E porque, em termos artísticos, aspiram a formas novas e já não suportam todos os academismos, que fundamentavam as obras passadas.
Por isso há uma peça estranha, que só ao médico Dorn sensibilizará. E há a ânsia de uma amor profundo, que se revelará impossível. Por isso a frustração é tanta que, sem razão aparente, ele disparará sobre a gaivota, que dá título à peça. Uma vítima inocente e colateral a todo o sofrimento colectivo.
E, sem se dar conta disso, Kostia será, afinal, a verdadeira gaivota dos dramas a que assiste. Porque viver sempre também cansa e as armas são objectos, que até se mostram bastante disponíveis.
A paixão impossível de Kostia incidira em Nina Mihailovna Zarechnaia. Uma renovada oportunidade para apreciar as qualidades de Rita Durão em papéis, que exijam a explicitação de uma diáfana fragilidade.
É ela - a rapariga rejeitada pela família, que parte para Moscovo em busca do sonho impossível (o amor de Trigorin, o sucesso nos palcos) - quem reivindica a condição de gaivota.
Mas ela é tão só uma mulher infeliz nas suas opções afectivas e incapaz de se entregar ao único homem, que lhe deseja dar todos os impossíveis.
Será a sua frivolidade, que a levará a aproximar-se demasiado do sol em que se pretende translacionar e a aí perder as penas.
Num papel bem mais secundário, mas afinal tão relevante, porque ilustrativo, pelo exagero, do percurso de Nina, temos Masha, a filha do feitor, numa interpretação contida de Teresa Sobral.
Sempre vestida de negro em luto pela própria vida, ela persegue o sonho impossível de ser amada por Kostia, embora ceda ao realismo de se casar com o mestre-escola. Uma opção, que acabou por não a recompensar, porque essa relação dá-lhe uma criança, mas não a afasta dos seus óbvios desejos. E por isso bebe e cheira rapé numa procura catártica de compensações, que nunca se revelam satisfatórias.
A mãe dela, Polina Andreevna, na prodigiosa interpretação da imensa Márcia Breia, viveu a relação clandestina com o médico, que hoje a afasta sucessivamente, ora porque os seus encantos já desapareceram, ora porque ele próprio, aos cinquenta e cinco anos, já deixou de ser o bem sucedido sedutor de todas as mulheres das redondezas.
Mas, viajado, este Yevgeny Aleksievich Dorn, interpretao por Luís Lima Barreto, é o único a encarar todo aquele drama com a lucidez de quem sabe confrontar-se com forças, que o extravasam.
Na arte de Kostia ele pressente o novo, que o fascina, mas sem saber bem porquê. Talvez, porque ao fazer parte dos privilegiados, ele se sinta incapaz de entender o fulgor revolucionário, que se vislumbra à distância...
Quem representa a arte decadente de uma sociedade em crise é Boris Aleksievich Trigorin, interpretado por Ricardo Aibéo.
Ele é o típico escritor, que olha para a realidade com a caneta e o bloco de apontamentos sempre preparados para anotar possíveis hipóteses de ficção.
No resto do tempo ele queda-se à beira do lago, de cana de pesca estendida à espera de alguma perca.
A sua relação com Irina tem mais de conformismo do que de exaltação.
Ela serve-se do seu prestígio para ilustrar a sua imagem de actriz de sucesso, bela e adulada pelos homens, enquanto a ele o interessam as pessoas com quem ela o põe em contacto nas suas estadias na casa de campo.
De entre os demais personagens secundários desta história, que alguns consideraram a mais autobiográfica de quantas Tchekov escreveu, ainda se deve evocar a veterania competente de José Manuel Mendes no papel do feitor, a sobriedade de Dinis Gomes no de mestre-escola, e sobretudo, a sapiência de Luís Miguel Cintra no do tio Piotr Nicolaievich Triplev. Muito envelhecido, este antigo conselheiro do Czar perde a alma no campo, quando sempre fora urbano por natureza. Mas o dinheiro desaparece completamente na conservação daquela quinta e a irmã recusa-lhe, através de Kostia, o empréstimo necessário para recuperar a sua prestigiada posição social.
A esse título ele representa a velha aristocracia, que os bolcheviques iriam erradicar violentamente, já que se revelava incapaz de compreender as urgências da História humana. Ao contrário do velho príncipe Salinas, os Piotr Triplevs degeneravam fisicamente, depois de há muito a alma lhes ter acinzentado.
Ainda assim, e a exemplo de Dorn, há nele uma ternura pelo sobrinho, que nada tem a ver com os seus conceitos ideológicos ou estéticos. É uma mera atracção pela juventude definitivamente perdida.
Em balanço é uma peça notável nas leituras possíveis de quanto revelam os seus personagens e bem actual nesta época, que parece ser a do fim de um conjunto significativo de paradigmas.

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