quinta-feira, janeiro 05, 2006

Uma rapariga santa?

Há objectos assim: como que vindos de outros planetas e a aterrarem no nosso para surpreenderem, para nos confrontarem com as nossas rotinas, as nossas certezas.
«La Niña Santa» é um filme argentino realizado por Lucrécia Martel, mas igualmente com os Almodovares no genérico a título de produtores executivos. Mas a forma como aborda os temas concebidos pela sua criadora nada têm a ver com um cinema europeu e, muito menos, norte-americano.
A história é simples: num hotel termal da província v0lta a reunir-se um Congresso de Medicina, que leva até aí umas dezenas de participantes.
Um deles é o dr. Jano, que vive angustiado entre os seus desejos e a imagem social. Os primeiros dedica-os a uma rapariga adolescente, que surpreende no espectáculo de rua de um músico capaz de fazer sair sons dos seus movimentos e de um sintetizador electrónico. È no meio da multidão de espectadores, que ele aproveita para se encostar a Amália e a excitar-se com essa presença do seu traseiro encostado ao seu sexo. Sem saber que ela é a filha da dona do hotel, essa Helena despeitada por saber o ex-marido em vias de ser pai de dois gémeos e ansiosa por encontrar uma nova relação afectiva, que a retire do seu vazio sentimental.
Há, pois, um triângulo amoroso, que se esboça entre mãe e filha e esse homem de meia-idade, que vem de fora.
E as contradições de cada um deles: se o médico foge de Amália, quando ela o assedia, a rapariga vive a rebeldia para com uma religião católica quase fundamentalista, que procura assimilar nos rituais sem lhe conseguir corresponder nos preceitos.
A sociedade argentina tal qual surge aqui representada é surpreendente: cheia de preconceitos relacionados com essa influencia clerical, mas a rebentar por todas as costuras desse espartilho de aparências. O hotel termal é, a esse título, um microcosmos elucidativo quanto a essa revolução de valores e de costumes: por muito que uma funcionária passe o tempo a desinfectar os quartos e os salões ou uma promotora de uma empresa farmacêutica seja despedida por passar a noite com um dos médicos organizadores do Congresso, há um desejo omnipresente em quase todos os personagens: até na cozinheira, que foge da cozinha para aproveitar a sua função de fisioterapeuta para contactar com a pele dos que a ela recorrem para massagens. Ou a melhor amiga de Amália e sus condiscípula no colégio religioso, que não hesita em se deixar sodomizar pelo primo sempre que tem oportunidade, apesar de decidida a preservar a virgindade até ao casamento. Uma outra forma de demonstrar como, à falta de poderem assumir o desejo pelo sexo do outro e arcarem com as consequências - a gravidez - os personagens optam por opções de substituição.
Inteligente, e a contra-corrente de um cinema imaturo, feito para adolescentes, o filme de Lucrécia Martel opta por um final em aberto: apesar de estar iminente o desmascaramento da perversão de Jano, o filme acaba antes disso acontecer. Permitindo-nos todas as possibilidades de recriação deste universo e do que ele evoluirá a partir daí. Porque em sociedade tão condicionada é pela via do escândalo, que ela pode ver estilhaçados todos os seus fundamentos reaccionários. Libertando quem nela se frustrava para horizontes bem mais abertos…
Mas comecei por comparar este objecto a um autêntico alien. Porque, em aparência, todo este ambiente já nos parece tão distante: o salto dado em Portugal nos últimos trinta anos foi de tal monta, que muitos destes espartilhos parecem longe de nós. A revolução sexual parece instalada desde que a vitória de quem defendia o divórcio contra a regra do casamento para toda a vida passou a possibilitar que o amor passasse a ser eterno … apenas enquanto durasse.
E veio depois a condenação social de quem insiste em criminalizar a prática do aborto, ou o progressivo respeito pelos direitos à diferença de lésbicas ou de homossexuais.
Mas as histórias de pedofilia e de outras agressões contra as crianças mostram que existe ainda um potencial muito grande de frustração sexual, que vitimiza os mais novos e desprotegidos.
O que «La Niña Santa» explicita é a incompatibilidade de uma igreja, que não seguiu a via imprevisível, mas prometedora do Concílio Vaticano II e decidiu retomar uma visão do mundo, que é a da sociedade campesina da época pré-industrial. Cavando, mais e mais, o abismo entre si e uma sociedade aonde o desejo de felicidade ainda se confunde fundamentalmente com a expressão mais física das emoções…
A Argentina de Lucrécia Martel não estará muito distante de um certo Portugal, que conhecemos nas nossas infâncias. Quando a Igreja do Monte ainda se enchia para a missa de Domingo e os desejos refreados dos que nela se recolhiam eram expressados em histórias de bruxedos e de possessões demoníacas.
A imagem final - aquela em que as duas amigas flutuam na piscina - é por si mesma eloquente quanto à mensagem final do filme: as adolescentes alheiam-se dos dramas dos adultos de cujas teatralidades só lhes chegam os ecos e mantém-se à superfície, expostas de frente para o futuro e não de costas como os medos e preconceitos ligados ao passado as terão até ali imposto.

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